(Um exercício de imaginação)
C. Caliman
Ensaio de 1977
A comunidade crente reúne-se periodicamente para celebrar a eucaristia. Jovens e velhos, homens e mulheres, crianças e adolescentes, gente de todos os matizes e cores, na diversidade de linguagens, culturas e posições sociais, sentam-se lado a lado no mesmo culto. Todos lá estão para “assistir missa”, diz-se comumente, enquanto o padre, lá no altar, faz às vezes do Senhor Jesus. Ele então “diz missa” ou simplesmente “reza a missa” pelos pecadores.
Essa maneira típica de falar da eucaristia na Igreja católica não é nova. Já deve ter melo menos mais de um milênio de uso. No entanto, é de se notar que, entre expressões que vão e vem, na linguagem das pessoas que freqüentam a Igreja, há certa mudança na nomenclatura em torno das atividades que acontecem numa Igreja. Há os que adiantam um novo modo de falar sobre o assunto. Já não se exprimem numa forma, diria “dualista”: nós de um lado e o padre do outro, mas de uma forma mais globalizante, envolvendo-se também na atividade, como quem participa na produção da celebração. Vão para a Igreja “celebrar a eucaristia”, participar da “reunião da comunidade” e outras expressões que tais. Variam os nomes. Isso é revelador de uma nova vertente da prática da Igreja, novas motivações e diversa compreensão do mesmo mistério e da mesma celebração.
As motivações dos que vão à missa/eucaristia dos cristãos são bastante variadas, ao menos tantas quantas são as visões religiosas que se espalham pela praça da Igreja. Nem sempre estão de acordo com o sentido original do sacramento instituído pelo Senhor para que recordássemos o sentido último de sua vida e as implicações de sua atividade histórica. O sentido original de sua vida, manifestado profeticamente na sua ceia derradeira, às vésperas de sua morte na cruz e gloriosa ressurreição, escapa a alguns, que nem se percebem ligados à sua história pessoal. Alguns não chegam à compreensão e ao significado que lhe concederam devotamente as primeiras comunidades dos crentes.
O sincretismo religioso esparramado por todos os lados, inevitável e também ele com seu significado histórico, se encarregou de infiltrar significados muitas vezes alheios ao sinal da fé, na medida em que projetou sentimentos estranhos à tradição. Por outro lado, mesmo nos muitos fiéis assíduos de nossas paróquias e capelas reduziu-se a missa a um ato de piedade individual, a uma devoção, ofuscando o significado mais profundo da eucaristia e seu conteúdo eclesial: a unidade da comunidade que é significada e realizada pela mesma realização da memória do Senhor morto e ressuscitado na eucaristia da comunidade reunida.
Neste contexto, estabeleceu-se soberano o legalismo e seu parceiro o ritualismo. Estes estancaram ainda mais o dinamismo real da comunidade fraterna e isolaram o sinal da fé posto na comunidade pela consideração asséptica da hóstia consagrada, posta no altar do Senhor e no sacrário solitário. Isolado na solitária prisão, o Senhor, presente no sinal do pão e do vinho, deixou de conduzir suas ovelhas para o mundo em seu nome. Na prática eclesial tradicional chegou-se a uma paradoxal celebração multitudinária e massificante, ao mesmo tempo em que individualista e privatizante.
A piedade particular ao SS. sacramento do altar ou ao prisioneiro do tabernáculo parecia ter chegado ao ponto de ter abafado e mesmo dispensado a comunidade que constitui o quadro da celebração. Chegou-se com facilidade à celebração “privada” das muitas e freqüentes missas de devoção, celebradas nos retalhos de Igreja ou nos recantos da sacristia, colocando-se em recesso a mediação fundamental e criadora da comunidade reunida na ação de graças, no sacrifício de louvor, na memoria passionis, mortis et ressurrectionis Jesus Christi “pro nobis”. A comunidade real não tinha, de fato, nada a dizer neste contexto. Ela já fora posta fora do templo sagrado, no qual o sacerdote seria o único a penetrar, buscando a ligação perdida. A assembléia passou a ser uma peça decorativa do drama representado em nome de Cristo no altar. O fiel, distanciado do sacramento da unidade, também não encontrava o caminho para descobrir o irmão que estava a seu lado.
O juridicismo dispensava a procura do outro na missa multitudinária. Bastava a presença solitária na multidão e a essencial referência de cada um dos cristãos com o vigário ou o sacerdote celebrante, representante plenipotenciário de Cristo naquele momento solene e sagrado. Nada mais. Neste contexto, cada qual recebia seu devido lugar. Jesus Cristo, glorioso e vencedor da morte, no céu à direita de Deus Pai, foi reduzido neste espetáculo monótono à condição de prisioneiro do tabernáculo, como fugitivo do mundo e dos compromissos assumidos solenemente na encarnação, à espera da consolação daqueles que lhe desejam melhores dias; ele está como que morto na hóstia, sem forças, sem vigor, sem dinamismo, cerceado nos limites das “espécies”, chorando as ofensas recebidas e o desprezo dos que não o adoram e veneram. Ele se especializou como o “Senhor das dores”, na alegoria da morte, na ruptura da unidade vital de uma antropologia dualista em que corpo e alma, pão e vinho, corpo e sangue estão pela divisão do homem e não pela sua qualificação na totalidade de uma presença que se entrega, mesmo à custa do sacrifício, do sangue, da imolação de si, por nós. Dividiu-se o Cristo, Separou-se a esperança da saudade. A saudade ficou para a missa, enquanto a esperança havia fugido para a devoção particular, para os conventos reunidos na meditação matutina ou na meditação dos fiéis mais achegados à Igreja conventual e recolhida.
Jesus recebeu a parte que lhe cabe nesta história dos homens. No máximo é de seu direito o tabernáculo. Jesus na solidão dessa cadeia é a imagem, talvez triste figura de uma Igreja, mais do que isso, de uma realização histórica de Igreja distante do mundo, desencarnada, que volta saudosa ao “sancta sanctorum” do qual seu Senhor a havia libertado desde o início, rasgando o véu do templo de cima até embaixo. Ela voltou para o sagrado, como ao seio materno, para obter proteção e espantar os demônios do mundo, do século, expulsando o medo da história, no recolhimento sobre si mesma, curtindo o receio de acompanhar os passos dos homens pelos caminhos do mundo, tremendo diante do horizonte aberto d vida, preferindo o passado, mesmo morto, mas que não incomoda.
O Cristo-hóstia, prisioneiro do tabernáculo, mais se parece com o “Senhor morto” do catolicismo popular do que o glorioso da proclamação pascal. No tabernáculo, sem desmerecer seu significado de reserva “alimentar” para o cristão que vive no dia-a-dia, e seu sentido de sinal da comunhão real que deveria existir em relação aos irmãos doentes e necessitados, é conservado e retido pela saudade. Perde-se, assim, o sentido de sinal de comunhão total do corpo eclesial de Cristo disperso nos seus muitos membros pelo mundo, pela paróquia afora, na doença, na fadiga, no descaso, na velhice esquecida. No sacrário dourado, objeto de devoção, Jesus poderá na verdade parecer um objeto de museu, um “Senhor” mumificado, coisificado, objetivado, manipulado para satisfazer as necessidades religiosas de alguns devotos, petrificado, impotente. O encanto retém seus fiéis encantados a seus pés, sem os enviar para a messe do mundo, anestesiados no solilóquio, no balbucio infantil, na lágrima de consolação, na dor de vê-lo assim tão desprotegido diante da sanha do mal, tão só e tão distante da cidade dos homens. Detido pela saudade de vê-lo, na contemplação, fora da cidade, no calvário, na cruz, fora dos muros, isolado, porém, do dinamismo de sua vida que para lá o conduziu e da vitória sobre a morte na páscoa da ressurreição.
Essa caracterização acima representa uma crítica, quem sabe, um tanto severa à tradição eucarística medieval e pós-tridentina. Mas a Igreja evolui, sob o sopro do Espírito que a habita no seu caminhar histórico, apesar de suas falhas. Esse sopro chegou reforçado no Vaticano II, no que a Igreja marca sua solene entrada para o mundo contemporâneo. Entrada simbólica é claro, pois ela nunca deixou de se posicionar diante do desenvolvimento da história. Também quando ela se retraiu para uma posição isolada e solitária, foi uma tomada de posição em função de um “desenvolvimento em separado”, um divórcio conflituoso com a sociedade moderna, sem dever nada a ninguém, muito menos aos homens que até se dizem ateus, a-religiosos, anticristão ou simplesmente e nada mais do que do que anticlericais. Esse passo de retorno, fruto de um ingente esforço histórico de muitos cristãos comprometidos, foi longamente preparado por uma série e movimentos e rupturas, pequenos ou grandes, mas que contribuíram com sua modesta participação na superação do velho edifício estrutural e organizativo da Igreja na sua forma de cristandade.
Esse é o grande evento da Igreja no século XX. Ele marca uma retomada da vida da Igreja passo a passo com a história dos homens, na sua função primordial de sinal da salvação libertadora de Jesus Cristo, sem pejo, com coragem; sem mistura, com autenticidade. Tal passo constitui um novo elo para criar um novo arranjo histórico da Igreja com a sociedade na qual ela se insere como sinal da fé, como consciência histórica e crítica da dignidade do homem como filho de Deus e criatura. Ciente de suas responsabilidades, a Igreja busca vigorosa e velozmente uma renovação interior e uma reavaliação de suas relações com o mundo do qual faz parte como fermento na massa.
Reflexão sobre a presença de Cristo na Igreja e no mundo sempre houve e nem vai ser essa a última vez que se coloca o problema que debatemos. Sempre vai haver a recolocação dele nos moldes das novas experiências históricas que os homens vão realizando na sua vida. Ela, no entanto, é-nos mediatizada nos diferentes modelos racionais tomados de empréstimo das várias filosofias, do senso comum, da tradição bíblica e cristã. O que se coloca aqui mais do que acolher ingenuamente qualquer novidade que vem pela frente, como se a mera mudança de instrumento criasse o bom músico, é estabelecer uma visão nítida do que seja a atualização que se opera no nível das representações simbólicas, na linguagem e nos instrumentos de comunicação religiosa. Há ainda aquela outra atualização que se opera na prática de vida da comunidade e daí cresce e ascende para a consciência, à reflexão, à representação simbólica, às formas sacramentais e lingüísticas que a comunicam no sistema comunitário.
Um primeiro passo será, pois, descobrir que a renovação conceitual e lingüística da liturgia e da teologia ainda não esgota o manancial da renovação da Igreja. Isso é só reboque novo para velhas paredes. Paredes novas e colunas recambiadas só mesmo o que fornece é a prática nova de vivência cristã na comunhão fraterna. Renovar a linguagem, descobrindo novos horizontes de como expressar velhos dogmas poderá vir de encontro à satisfação intelectual dos letrados de todos os matizes. Eles poderão depois até se orgulhar por terem inventado novas teorias explicativas que os “minores” não conseguem “pegar”. Tais explicações estarão mais ou menos de acordo com os modelos científicos galileanos, marxianos, freudeanos et caterva, estarão enfim mais de acordo com a compreensão filosófica do mundo de hoje ou com a famosa “comunidade científica” dos teólogos de escola.
Tudo isso pode ser até muito bonito, mas em nada ou quase nada influirá nas práticas das pessoas e das comunidades, a não ser o de empurrar a vida e a solução dos problemas um pouco mais adiante. A celebração da Palavra e dos sacramentos, afora os arranjos modernizantes, vai continuar desgarrada da vida dos cristãos e dos homens de hoje. Vai-se de novo celebrar a presença de Cristo, agora dentro da nova onda, como glorioso, pascal, ressuscitado e celeste, pois não se usa mais do “outro” Jesus – no meio dos aleluias e das emoções espirituais que os espetáculos bem emoldurados conseguem suscitar. Outros tempos, outros modos. No rito, pois, a vida continua de outra forma, regida por outras normas, por outra ética que não a de Jesus Cristo. Ela continua no trilho do individualismo, agora camuflado num personalismo pregado por muitos e compreendido por poucos. Ele não consegue fazer chegar o sujeito ao complexo comunicativo da comunidade. A vida continua ritualizada na sua realidade crua e nua pelo sistema econômico, político e cultural da sociedade que a organiza.
A celebração em si mesma, é claro, pode ser renovada, mesmo nestas condições. Também os teatros vão mudando. Não se assiste teatro como antigamente. Agora os moldes são diversos, novas são as roupagens que a cobrem (a celebração), dispensando os velhos adereços. Nova é a linguagem, agora permeada de personalismo, cheia de apelos de comunhão, participação e de comunicação intimista, batida pelos ventos da psicologia burguesa, recolhida dentro dos moldes vividos pela massa dos fiéis que freqüenta os edifícios onde se estabelece uma comunicação ampliada pelos instrumentos de comunicação de massa, num tom exortativo, o mais das vezes moralizante. Mais do que isso não se poderá esperar de uma celebração nos quadros de uma sociedade afluente. Se nossas esperanças de renovação na Igreja estiverem ancoradas neste mar, vamos apanhar pouco peixe. Os instrumentos não evangelizam a Igreja. Sua mensagem é a mesma da sociedade que os cria, não é o da celebração da memória do Senhor até que ele venha.
O dito acima mostra como é radical a influência da prática tanto social quanto eclesial na vida e celebração da fé nos sacramentos, principalmente na eucaristia. Se a eucaristia é dom de Cristo à sua Igreja, não podemos deixar de perceber que a celebração e seus adereços culturais são produto do nosso modo de nos comportarmos em sociedade e em Igreja. A nossa contribuição, o nosso produto de consumo, anual, mensal, semanal ou mesmo diário, é a organização da celebração no que ela tem de rito e encanto estético, no que ela tem de garra crítica ou de alienação. A celebração enquanto nossa celebração é fruto de nossas trocas sociais e eclesiais, de nossas relações estruturais, passando muitas vezes por cima das boas intenções sempre de boamente enunciadas e muito poucas vezes realizadas, dos nossos bons desejos, sempre atropelados pela brutalidade da realidade que nos cerca. Essa celebração é regulada pelo modo de produção dos bens simbólicos dentro da Igreja e da sociedade. Vai variar o tanto que o permita a Igreja e a sociedade.
Se alguma coisa real e definitivamente mudar de todas as experiências que se fazem nos dias de hoje, não será por causa de uma renovação meramente superficial, no nível da troca de simbolismos mais na moda. Isso não é renovação, é modernização. A mudança real virá de uma renovação da prática social e eclesial dos cristãos em todos os níveis. Esta será a real e verdadeira conversão que vai tornar mais límpida e transparente a leitura do grande sinal do pão e do vinho. Tal renovação será o espelho vivo da prática de vida da Igreja e de sua auto-compreensão em relação à história de Jesus Cristo.
Uma Igreja triunfalista e autossuficiente, monopolista e dominadora, celebra a sua eucaristia, não a de Jesus Cristo. E o faz à sua imagem e semelhança e não à de seu mestre. A sua própria celebração estará distante da ceia e da cruz de Cristo, das suas raízes históricas, da prática de vida de Jesus de Nazaré e de seu horizonte escatológico do Reino. O sacrifício de Cristo, revivido, reiterado como memória na liturgia se esgotaria na oferta dos dons consagrados, fechando-se à sua significação mais profunda (a “res sacramenti”), num absolutismo clerical, de uma Igreja triunfante neste mundo. Considerando-se na posse do Reino, ela administra seu próprio sacrifício como lhe apraz, e não como lhe indica o seu mestre e Senhor.
A renovação da prática eclesial no mundo de hoje é, pois, o verdadeiro motor da renovação da celebração eucarística nas comunidades. As mudanças que hoje rapidamente se operam na eclesiologia, rompendo o velho e antiquado arranjo monolítico da Igreja medieval, e rearticulando-a sob o eixo do povo de Deus são reflexos de novas experiências históricas da Igreja não ainda de todo desdobradas. Ainda não foram tiradas as conseqüências desses novos rumos no nível da expressão simbólica e na mesma articulação vivencial do dia-a-dia da comunidade, marcada como está ainda pelo antigo sistema, condicionada ainda às velhas imagens de outros tempos, cerceada ainda pelos limites estabelecidos no decorrer da vida que vai colocando os quadros possíveis do agir.
Por outro lado, porém, com o descortino de novas perspectivas de ação no mundo, o povo de Deus no seu conjunto, percebendo-se mais próximo da sociedade, já não cora as faces de pudor, tomando posições frente aos “poderes deste mundo”. Ela mesma não deverá ter mais receio de confessar divisões menores dentro dela, divisões entre seus membros, traídos por interesses diversos e divergentes, cuja matriz não é a fé mas o lugar social ocupado pelos comensais da Igreja.
Essa descoberta de divisões de seus membros, sociologicamente situados na escala social em posições diferentes e, por vezes, antagônicas, nos faz perder a ingenuidade daqueles que ainda percebem o mundo como uma massa contínua e homogênea de pessoas e sociedades, sem as diferenças quer dos indivíduos entre si quer das coletividades diversamente, sistematizadas por organizações sócio-políticas divergentes.
Isso nos leva a crer que, de ora em diante, celebrar a mesma eucaristia, a mesma memória do Senhor, não significará cobrir as diferenças numa harmonia e paz artificiais, que encobrem os diferentes e múltiplos interesses de classe, das injustiças amargadas na história pessoal e social, dos desmazelos da administração inerme. Não há como perder aquela ingenuidade da criança que ainda se diverte com o cavalinho de pau das liturgias-espetáculo. Não estamos ainda no Reino consumado, reunidos no mesmo redil da eternidade sem diferenças de interesses, na mesma ilha de paz e de tranqüilidade, enquanto nem mesmo o sinal posto nos quer deixar nesta visão simplista.
O sinal posto na reunião da comunidade é sinal de alerta de que a vida deve pautar-se segundo a de Jesus Cristo, Seu interesse maior está em que Jesus Cristo, lembrado na eucaristia, foi o Jesus atingido pela violência, pelo derramamento de sangue. Nós, porém, temos às vezes a coragem de nos apresentar no altar conciliados pelo arco-íris de nossas belas fórmulas, sem os pressupostos de uma análise séria e humilde de nossas relações interpessoais, no trabalho, no lar, na vida pública, na vida profissional e assim por diante. Não percebemos o conjunto estruturado e para que lado ele nos conduz qual ovelhas inermes. Não temos coragem de confessar o déficit de diálogo real que existe em nossa vida. Confessamo-nos já recuperados, sem nem mesmo superar o mal endêmico, as barreiras mais aparentes. Apresentamos-nos como comunidade gloriosa, antecipando presunçosamente a consumação da história, sem o sacrifício real, sem a entrega, marca registrada do cristianismo de Jesus Cristo, sem a dedicação e o acolhimento, sem o desprendimento, sem a luta pela mudança e transformação de nossa sociedade. Transformamos a celebração num rito mágico.
Não pretendo analisar o desgaste do rito tradicional da missa, pois este já um fato evidente. Não deixaria, todavia, de ser estimulante entrever os sintomas de desgaste do rito da celebração eucarística segundo os moldes de uma linguagem modernizante. Isso não significa, de forma alguma, que se queira negar valor e sentido à renovação da linguagem. O que se quer afirmar é, sobretudo, que o que está se desgastando é a prática social na qual tal linguagem está ancorada. Ela está, para se usar uma gíria, furada. A velha missa foi envernizada com os poderosos meios de comunicação e o uso das línguas vivas (nisto há algum valor), mas com o verniz de uma sociedade que a produz em série e a substitui, sem mais, como na moda, por expressões cada vez mais cambiantes e visões efêmeras do relacionamento interpessoal e social. Assim se transforma a liturgia num carrossel, como na sociedade de consumo.
O mundo moderno e contemporâneo produziu uma sociedade de opulência e de consumo de bens, pela aplicação de sua racionalidade em todos os níveis de organização do trabalho, da sociedade e da produção da cultura. Ora, isso poderá se estender também à vida cristã, à Igreja.
A renovação litúrgica, nos moldes da sociedade que aí está, vai trilhando o caminho da obsolescência, como todos os produtos em série da praça e do supermercado. Vai sofrer o desgaste dos produtos do supermercado de bens simbólicos da sociedade. A não ser que a celebração tenha outras coisas a dizer além de palavras e significantes vazios.
Não saberia dizer agora quando vai acontecer a definitiva obsolescência do modelo que estamos criando para essa nossa sociedade, mas pode-se prever a exaustão do modelo, na medida em que para manter a platéia amarrada ao espetáculo não resta alternativa senão torná-lo mais atraente e sensacional, cativante e variado. O conjunto torna-se um bom teatro de revista.
A festa continua, mas prejudica a imagem dos seus atores principais, Cristo e a mesma Igreja, interessados em que sua peça não caia em degenerescência por causa de um público em busca de sensação, que não mais lhe percebe o profundo sentido dramático e histórico, revolucionário e libertador.
Por isso hoje a grande questão da teologia e da celebração não é tanto renovar-lhes as vestes quanto renovar a prática de vida na qual se apóiam, é refazer sempre e cada vez a relação fundante e instituinte com Jesus Cristo e os significados maiores que ele nos legou. A prática de vida de Jesus Cristo, sua encarnação histórica, no compromisso e no amor, na missão de cada dia. Essa é a ligação mais vivificante para a celebração. Lembrar os ditos e feitos dele e atar os nossos à sua tradição até que ele venha, marcando o caminho com sinais de esperança para aqueles que nos são companheiros de viagem. Instituir a eucaristia na nossa vida assim como Cristo instituiu, uma vez por todas, a sua cruz fincada em sua vida, interpretando-a na refeição de despedida dos amigos, sua derradeira ceia. Está aí uma tarefa nossa de cada dia.
Por isso, fora da cruz de Cristo não ha salvação. Há sim é muita ilusão e engano. Há fantasia e mito, há sim racionalização perdida e sem o nexo principal e explicativo. A cruz de Cristo, marcando o final de sua vida suada e vivida, na luta do Filho de Deus que venceu a morte e o pecado, é que abriram novas perspectivas históricas para todos os homens, do primeiro ao último.