Cristianismo não religioso. O que é isso?

Participei na terça feira, dia 25 de março, de uma banca de mestrado. Nele Sandson Almeida Rotterdan apresentou sua dissertação com o título: Senso religioso dos sem Religião: estudo a partir da noção de cristianismo não religioso de Gianni Vattimo. Em cima da leitura que fiz, apresentei as seguintes considerações.

1. Em busca de uma interpretação do cristianismo. Não é de hoje que o cristianismo está em crise. As interpretações se sucedem . Crise não é de per si negativa. Ela traz em si uma nova esperança. Desde o advento da modernidade, o processo de secularização colocou em crise o cristianismo tradicional, marcado pela cristandade, agora sob o impacto crescente da razão ilustrada (Aufklaerung). Muitas foram as leituras desse processo. Antes de Vattimo, dentro da tradição teológica alemã, Bonhöoeffer já havia lançado sua nicht religiöse Interpretation des Christentums. Ele tinha como pressuposto a radicalização do processo de secularização que conduz a um mundo em que o ser humano moderno já vivia sem o pressuposto Deus (Nietzsche já havia decretado a “morte de Deus”), ou seja: o ser humano devia ser responsável pela sua história et si Deus non daretur (mesmo se não existir Deus) .Desde os anos 60 H. COX, The secular city (A cidade secular), 1965; The religion in the secular city (1984); por fim, Fire from heaven (1994), e tantos outros, já refletia a transição por que passava o cristianismo ocidental.

2. O que entender por cristianismo não religioso? Para Bonhöffer a interpretação não religiosa do cristianismo se contrapõe de imediato a duas figuras emblemáticas da teologia do séc. XX: Bultmann e Barth. Para Bonhöffer a interpretação bulmaniana diluía a mensagem do cristianismo numa interpretação a partir do indivíduo moderno, pensado a partir da teologia liberal, sem levar em conta a sua radicalidade; enquanto para ele K. Barth, em sua teologia dialética, resgatava o absoluto de Deus em detrimento da história (Deus é o ganz Andere). O que lhes faltaria era levar a sério a encarnação e a cruz. Falando de outro modo, o esvaziamento de Deus, a kenosis.

Aqui, creio, tocam-se Bonhöffer e Vattimo. Todavia, o horizonte de ambos me parece diferente. Para o teólogo alemão o pano de fundo de sua leitura radical era a modernidade e seu desenvolvimento. Para o filósofo Vattimo, é a pós-modernidade. E nesse horizonte do pensiero debole Vattimo pensa a possibilidade de um futuro para o cristianismo.

Encurtando todo o discurso sobre como Vattimo pensa esse cristianismo não religioso como religião do sujeito pós-moderno, que está tão bem trabalhado pelo Sandson, depois da leitura que fiz, cheguei a algumas reflexões, diga-se de passagem, de caráter “não dogmático”! Achei que também o cristianismo não religioso de Vattimo tem também seus pequenos “dogmas”:

O primeiro é que ele, mesmo se afirmando no horizonte da história humana, pressupõe o processo encarnatório como “entrada” do Divino no mundo da hermenêutica. Essa afirmação é necessária, mas incapaz de superar a ambiguidade da história humana, mesmo sendo a história do Divino que se faz humano. Então me lembro da figura de Sísifo. Nessa leitura do cristianismo, nós nos parecemos a Sísifo, empurrando a pedra para cima da montanha. Mas ele é sempre devolvido ao vale! Assim, nós nesse cristianismo, interpretado à luz do pensamento debole, somos sempre devolvidos aos fragmentos de nossa realidade, da nossa existência.

Assim, o mundo religioso dos sem religião se parece a uma grande floresta virgem. Nós nos encontramos nela sem mapa e sem bússola. Mas somos premidos a fazer o nosso caminho com os nossos parceiros históricos.

O segundo “dogma” é desdobramento do primeiro. Com a “morte de Deus” e da metafísica clássica, estamos inexoravelmente referidos a nos mesmos, à nossa existência (Dasein). Aqui se radicaliza a passagem de um teocentrismo exacerbado a um antropocentrismo radical. Antes se legitimava a história a partir de um centro fora do mundo, imaginado como o mundo de Deus. Agora, se legitima a história a partir do ser humano. Antes o ser humano achava que tinha às mãos o mapa e a bússola, ou seja, a certeza de um “sol” para orientá-lo na floresta da história. Agora não lhe aparece esse “sol”, deu eclipse. Ele não o vê. Está centrado em si mesmo, sempre recomeçando. Não pode vangloriar-se de um troféu conquistado e sentar-se à sombra. Tem que conquistar-se a si mesmo a cada dia pela responsabilidade histórica. A construção é sempre provisória.

Enfim, a verdade dessa religião pós-moderna é que não há verdade para além de nós mesmos. Para que essa verdade seja possível, no entanto, é necessário abrir-se para o outro, entrar em sintonia com a história de Jesus, numa entrega sem limites. Essa talvez seja a “verdade” tanto para cristãos “tradicionais” quanto para pós-modernos: a imensa caridade com a qual Cristo nos amou, entregando-se na cruz, desvestindo-se de toda figura divina (aliás, isso encontramos e Fl 2, 6-11).

3. Crise radical de um modelo de cristianismo. No meu entender, as interpretações radicais do cristianismo hoje refletem a crise radical de um modelo de cristianismo (e de Igreja) marcado pela forma histórica da cristandade, inaugurada por Constantino no séc. IV e, depois, legitimada tanto pela filosofia, a partir da metafísica clássica, centrada na essência, quanto pela teologia em sua formulação clássica dos dogmas cristãos.

Hoje também a reflexão teológica se volta para o repensamento do cristianismo para além da moldura histórica da cristandade. Por exemplo, na teologia da libertação temos a interpretação de P. Richard, Morte das Cristandades. Nascimento da Igreja (Paulinas, 1982) ou J. Sobrino, A Ressurreição da verdadeira Igreja (Loyola, 1982). Na verdade, a morte da Cristandade, sob o impacto do processo de secularização etc. abre a possibilidade de um cristianismo diferente do tradicional, sacral, do dogmatismo rígido e estático, para uma interpretação dinâmica, relacional, dialógica, existencial. Essa interpretação pode também ser chamada de secular porque leva a sério a história, propõe responsabilidade pela história, sem muletas!

A afirmação da fé como algo “absoluto”, que defina a própria identidade cristã, não pode ser deduzida imediatamente da capacidade humana de impor um modo de ser e de agir, mas diz que a fé é, antes de tudo, um dom, uma oferta que Deus faz de si mesmo em Jesus Cristo. Nesse sentido é graça absoluta não depende de nós, mas daquele que se dá como graça libertadora. Essa oferta gratuita e livre de Deus deve ser recebida em plena autonomia e liberdade pelo ser humano no mundo, assim como o evento do outro em minha vida tem o sabor da gratuidade que se abre à uma resposta, dando sentido à minha vida.

Na verdade, a fé não suprime o que é humano, histórico – a autonomia e a liberdade dos sujeitos. Antes pressupõe o ser livre e autônomo. A cristandade, como amálgama de religião e política, é que viciou o cristianismo pela imposição da fé (coerção social, inquisição, cruzadas etc.).

4. Fim do Cristianismo? A crise radical da cristandade não anuncia por si mesma o fim do cristianismo, mas uma nova chance histórica de buscar um cristianismo capaz de afirmar o seu horizonte último, marcado pela condescendência divina (significada na Encarnação) como afirmação plena do humano. Esse leitura nem é nova. Já Ireneu de Lião afirmava que gloria Dei homo vivens (Adversus Haereses).

De fato, numa fé dialogal o outro se torna constitutivo do sujeito. Assim, o Outro divino não nega o humano, mas o afirma como plenamente humano. Como diz L. Boff: tão humano assim, só mesmo sendo divino.

5. Deus está morto? Última reflexão: o que está implicado no anúncio da “morte de Deus”? Qual a sua lógica? No meu entender, não diretamente a negação do Absoluto, mas a negação do “outro”, o ser humano no mundo como livre e autônomo para definir o próprio destino, dando-lhe um sentido. O evento da “morte de Deus”, a cruz de Cristo, é um discurso-convite a ser-em-relação e não a negação do “Outro” (Divino). Uma das leituras que os intérpretes modernos deram de Jesus é justamente o de ser-para-os-outros.

Belo Horizonte, 25 de março de 2014.

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Interrupção!

Os alunos do terceiro anos de Filosofia fecharam solenemente seu curso com a colação de grau, no Colégio Padre Machado, Belo Horizonte, dia 5 de dezembro de 2013. Tive a honra de presidir o evento. Como de praxe, que abre e fecha a sessão deve dizer umas palavrinhas. as ideias estão no texto que segue:

Um curso acadêmico dura normalmente uns 3, 4 e até 5 anos. O de Filosofia do ISTA dura 3 anos. No fundo, é uma interrupção. Na verdade, já como que nascemos filósofos. Crescemos fazendo perguntas complicadas aos nossos pais. Algumas não há como responder, mas são perguntas que buscam implicitamente um sentido para a experiência que fazemos. A admiração frente ao inesperado, a surpresa, o espanto, a dor e tantas coisas que tecem nossas experiências desde cedo, ainda como crianças, vão construindo a nossa vida. O curso acadêmico é, dentro desse processo, uma “interrupção”. Nos encontramos frente a conceitos filosóficos, frente a categorias que ‘organizam’ mais tecnicamente nossa experiência existencial. Mas a vida ‘excede’ à construção rigorosa dos nossos discursos. Completado o curso, o que resta? Retornar às perguntas! Isso contra o constante risco de nos tornarmos meros consumidores em nosso mundo técnico e científico. Então, morre o filósofo. Qual é a tarefa que fica para os formandos? Não renunciar à razão crítica, aquela que faz perguntas ‘chatas’ e é capaz de desconfiar do sistema que nos enquadra diariamente numa camisa de força. Devemos levar adiante a tarefa de sempre dizer de novo o nosso mundo cambiante, sem nos resignar na mesmice da rotina. Diz Gadamer, seguindo o seu mestre Heidegger, que o ser que pode ser compreendido é linguagem. Esse é o exercício de leitura, de interpretação do nosso mundo a cada dia que nasce. Sein dass verstanden werden kann, ist Sprache. Que nossos formandos continuem como filósofos críticos pela vida afora, sem receio do exercício da própria razão cidadã!

C. Caliman

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Religião e Internet

 

SBARDELOTTO, Moisés. “E o Verbo se fez Bit”. A comunicação e a experiência religiosas na internet. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2012. 367 pp.

Estamos hoje diante do fenômeno da digitalização do religioso, por todos os lados, nas fronteiras da revolução tecnológica midiática. Esse assunto está na moda. É atualíssimo. Sbardelotto nos oferece uma análise da mídia eletrônica católica, tomando como foco o campo da comunicação e o campo do religioso, do sagrado, que invade o nosso cotidiano. Um pouco mais de vinte anos atrás, Ralph Della Cava e Paula Montero haviam publicado um livro com título parecido: …E  o Verbo se fez Imagem. Igreja Católica e os Meios de Comunicação no Brasil: 1962-1989. Petrópolis: Vozes. 1991. 269 pp. O interesse que une essas duas publicações é o mesmo: a comunicação na Igreja católica. É interessante, no entanto, notar a diferença entre as duas abordagens do fenômeno da comunicação religiosa católica. Por um lado, o clima cultural das décadas alcançadas pelo livro de Della Cava e P. Montero era ainda da modernidade dentro da qual uma grande instituição, forte e representativa, a Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), enfrentava o fenômeno da comunicação social dentro do Brasil em processo acelerado de modernização. Naquele momento histórico a mídia em relevo era a da imagem (TV, Videocassetes etc). É a instituição que comanda o processo e quer manter sob suas rédeas os Meios de Comunicação a serviço da Igreja, direcionando o seu projeto de evangelização. Por outro lado, o trabalho de Sbardelotto se dá noutro clima, da pós-modernidade. A unidade expressa pela instituição forte cede lugar cada vez mais à mídia digital, no espaço midiático, anárquico e fragmentado. Os atores não são mais os bispos ou seus representantes, mas indivíduos ou grupos que assumem, na prática, o processo de comunicação com os seus “clientes”.

A obra em questão é apresentada pelo prof. Antônio Fausto Neto, orientador da pesquisa, realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – e prefaciada pelo diretor da revista La Civiltà Cattolica, Antônio Spadaro, SJ. Fechando o conjunto, o professor de teologia sacramental do Pontifício Ateneo Santo Anselmo, Andrea Grillo, oferece um Posfácio para colocar as coisas no lugar: o que é, nesse processo da comunicação do religioso, o “absoluto” e o que é o “relativo” (só não ficou claro, pelo lapso que há entre a p. 349 do posfácio e a p. 351, a quem pertencem as Conclusões. Presume-se que sejam ainda do Posfácio!).

O capítulo inicial (1) reza: “No princípio era o Verbo”. Uma introdução. A problemática da midiatização digital do religioso é introduzida com a História de Fábio. Ele mora longe da Igreja (85 km). Não tem condições de participar da Eucaristia como deseja. Arruma hóstia e vinho, e com a família se coloca frente à TV que transmite a celebração. Por fim, ele e sua família completam a liturgia familiar, consumindo o pão e o vinho. Ele expõe suas dúvidas a um “padre online”. Este diz a Fábio que ele e sua família fazem uma “representação na fé, muito bonita e louvável, mas não comungam sacramentalmente. Comungam sim, espiritualmente” (p. 26). Posta assim a questão, o A. se dá agora ao trabalho de tomar como base de observação quatro páginas da Internet de conteúdo católico: a de Aparecida, a catolicanet, das Irmãs do Sagrado Coração de Jesus de Curitiba e a do Pe. Reginaldo Mazotti (cf. p. 31). Colocada a questão e o universo pesquisado, resta a tarefa de fazer a “análise crítica e reflexiva da relação mídia-religião” (p. 32).

No capítulo 2 (Religião/Internet: perspectivas e desafios) o trabalho prossegue com a delimitação do campo de estudo, restringindo-o à relação comunicação e fenômeno religioso na internet, em ambientes católicos, que possam ter relevância para o futuro. De fato, constata o “deslocamento do fenômeno religioso dos templos geograficamente localizados para as mídias eletrônicas… e digitais”, ou seja, a “midiatização do fenômeno religioso” (p. 70). Parte do princípio (teológico) de que Deus precisa estar presente também na Rede, na realidade virtual e tornar-se informação, ‘fazer-se bit’. Na verdade, se Deus pode ser encontrado e entrar na experiência do humano, ele entra também na atual “revolução comunicacional” como entrou na primeira revolução comunicacional do ser humano, a comunicação oral, e depois na revolução da escrita, que os antigos foram inventando e progressivamente aprimorando. Nos últimos séculos a humanidade foi mais adiante pela criação de novas mídias como telefone, rádio, televisão e agora a grande rede mundial. Essa rede mundial “guia hoje o fluxo das grandes mudanças culturais e sociais” (Bento XVI, Mensagem para o 45º dia mundial das Comunicações sociais, 2011).

O passo seguinte nos coloca frente ao fenômeno da midiatização do religioso. De fato, o capítulo 3 dedica-se aos Processos midiáticos da religião contemporânea. Ele é, pois, dedicado ao esclarecimento dos conceitos que envolvem a compreensão desses processos midiáticos. Nem tudo é claro à primeira vista quer pela novidade do tema quer pela sua complexidade. No fundo, é preciso entender a diferença da eucaristia celebrada pelo padre na comunidade e a da tela da TV! Por que na celebração do padre a comunhão é sacramental e a outra, da TV, é espiritual? Na prática, estamos diante do fenômeno mais amplo, o “metaprocesso” midiático, “que molda as condições da vida social em longo prazo” (p. 73). Aqui a questão vai mais longe: como entra a técnica na relação “Deus-fiel” e como ela entra na relação entre o fiel e a comunidade eclesial? Enfim, queremos saber melhor “que tipo de religião está nascendo da mídia” (p. 104).

O padre online diz que a família de Fábio está “antecipando a Igreja do futuro”. Assim, o capítulo 4 aborda a Religião em novas modalidades comunicacionais. O fiel se abre a “novas modalidades de experiência da fé”. O ponto de partida da interação religiosa se situa na própria experiência que o ser humano faz de si mesmo, do mundo e do Mistério que é Deus. A partir desse ponto básico, o texto procura ver como se dá essa interação dentro do sistema católico online e como o sagrado é codificado no modo próprio da internet e, depois, decodificado pelo fiel. Gera, desde modo, novas narrativas de interação, agora não mais com a forte presença da instituição religiosa, mas dentro de um ato comunicacional configurado pela relação entre o indivíduo e o sistema midiático. Cria-se uma ritualidade que se desloca do templo físico para o ambiente online. Ou seja: o “ato comunicacional midiatizado” se desdobra em alguns eixos: passa pela experiência e pela interação; amolda-se à interface da interação; se expressa nas novas narrativas da interação com discurso específico; por fim, se rotiniza no novo ritual desse ato comunicacional.

No ritual online “o sagrado se faz bit”. Temos, então, o capítulo 5: Religião em novas configurações de tempo-espaço-materialidade. Essa parte discute as dimensões do metaprocesso comunicacional: primeiro, as novas formas de existência e presença, caracterizada pela digitalidade. Segundo, novas formas de acesso e participação, cuja característica própria do mundo informacional é a ubiquidade. Em qualquer lugar e de qualquer lugar você pode ter acesso ao “espaço” religioso. Terceiro, se estabelecem novas formas de vínculo e interação que vem com a noção de rede. É a conectividade ampla que ela proporciona. Quarto, a rede proporciona novas formas de discurso e de narrativa. O sistema é portador de uma hiperdiscursividade aberta e sem fronteiras.

O capítulo 6 é o mais longo (156 pp.). Dedica-se à análise empírica de como se desenvolve a experiência religiosa online no contexto católico no Brasil: “E o Verbo se fez bit”. A experiência religiosa na internet. A primeira constatação é da complexidade do “ambiente” com a oferta de muitos “produtos” religiosos, mais especificamente, a “capela virtual” de caráter devocional. A questão que se coloca é como lidar com o sagrado dentro da rede. É claro que isso requer o manejo não mais, digamos assim, de velas reais em seus castiçais, mas o manejo da rede, desde a tela, os periféricos etc. até acessar o que importa dentro do ambiente virtual. O fiel tem que se acostumar à interface virtual que proporciona para ele a interação com o sagrado. Ele tem ainda que aprender os novos discursos próprios da mídia virtual e seus novos ritos.

Chegamos, assim, ao capítulo 7, o último, do itinerário reflexivo do nosso livro: “Vi o céu aberto”: rumos e muros da religiosidade na internet. Esse capítulo é introduzido com uma afirmação enigmática do padre online: “Só quem viver vai ver”. O que vai sobrar de toda essa discussão? Avançamos rumo a uma nova sacramentalidade ou teremos que reafirmar o valor da celebração do memorial cristão que exige presença física e participação concreta? O autor fecha esse capítulo denso com mais perguntas do que respostas.

Para oferecer elementos adequados para a compreensão das questões suscitadas temos que clarear alguns pontos fundamentais para o nosso debate. O conjunto do trabalho de M. Sbardelotto aguça nossa curiosidade e nosso interesse. Para começar a conversa sobre os desafios colocados, fazemos algumas observações críticas no sentido de avançar na reflexão:

1) Comecemos com o título do livro, que lembra o evangelho de João, 1, 14: “E o verbo se fez carne”, se fez corpo, se fez história. O corpo é a realidade originária de qualquer processo de comunicação humana. Sem ele não temos condições de comunicação histórica. Tudo o mais se torna mero objeto do mundo. Com o corpo, o gesto, a voz, o desenho, a imagem, a escrita e … os bits adquirem sentido para o ser humano no mundo. Esses “objetos” entram, assim, no mundo do sujeito da comunicação, o ser humano. Os bits são como o cachimbo da famosa tela de Réné Magritte, com a inscrição: “Isto não é um cachimbo”, mas sua representação (veja à p. 339). Para dizer que “o Verbo se fez bit”, primeiro, temos que negar: “o Verbo não se fez bit”, e só depois afirmar que por meio dele o Verbo, a Palavra substancial, chega até nós. Ele entra na cadeia da midiatização do fenômeno religioso. Este se situa em continuidade estrutural com a experiência religiosa do ser humano no mundo desde sempre e, ao mesmo tempo, se apresenta em descontinuidade conjuntural com as formas tradicionais de mediatizar o religioso, que vão se transformando com o avanço da cultura e da tecnologia.

2) Outra observação diz respeito à relação entre “experiência de fé” e “experiência religiosa”, ou seja, entre fé e religião. A impressão que se tem é que no decorrer do livro se tomam esses dados da experiência humana como equivalentes (por exemplo, à p. 107). Para início de conversa, observamos que há uma tradição na teologia de distinguir sem separar essas duas dimensões da experiência do mistério. Compreende-se a religião é ainda obra humana. Vivendo na história a experiência de si mesmo frente ao mistério do mundo, ele cria um sistema de crenças e valores que o situa dentro da realidade. Assim, a religião expressa o ser humano em busca de sentido para a sua existência. A teologia cristã, por seu lado, concebe a fé não como algo, mas como relação com Deus que nos atinge na vida e ao qual nos confiamos a ele. Essa realidade relacional nos atinge na história como gratuidade absoluta de Deus. Na religião o ser humano sai ao encontro do mistério. Na fé é Deus que sai ao encontro do ser humano na sua história. É claro que a fé normalmente busca expressar-se na religião, mas ela transcende o seu revestimento religioso. Essa distinção fundamental possibilitou a Paulo superar o revestimento religioso (e cultural) do judeo-cristianismo, afirmando que é pela fé que somos salvos e não pelas obras da Lei, pela observância religiosa. Desta forma o Apóstolo inicia uma nova fase do cristianismo pela inculturação no espaço cultural e religioso helênico, depois latino, germânico e, assim, até os nossos dias. Partindo de seu único fundamento que é Cristo, a fé cristã se abre às diferentes culturas.

3) Outro aspecto de interesse mais imediato na nossa discussão é que o livro de Sbardelotto abre-nos à possibilidade de uma “liturgia virtual”. O que podemos dizer a essa respeito? Na compreensão cristã, liturgia significa “ação do povo” que se apresenta a Deus, presidido pelo “Sumo Sacerdote”, que é Cristo (como nos ensina a carta aos Hebreus). Em nosso caso, a “liturgia virtual” imita a “liturgia presencial”, mas não é a “liturgia presencial”, que é a da comunidade que celebra num tempo e lugar real, ponto de partida da geração da imagem televisiva. Entretanto, para melhor compreender os vários aspectos da questão talvez seja preciso perceber a diferença que há entre a lógica da vida cristã e qual é a lógica da mídia. A vida cristã não se orienta diretamente pela lógica da mídia, mas pela lógica da fé. A mídia explicita, a seu modo, a lógica da fé que preside a vida cristã. Desta forma, a mídia se coloca a serviço do fundamento da vida cristã. Portanto, a dinâmica essencial da vida cristã, presidida pela lógica da fé, pode ser potencializada. Continuamos a ser “ouvintes” da Palavra original que chega aos nossos corações por essa nova via. Assim, a lógica da mídia não substitui a lógica da fé, que nos coloca frente ao mais real da vida de Jesus, sua entrega na cruz como expressão de sua prática histórica de vida e sua ressurreição. A mídia pensada na sua relação com o fundamento deve nos conduzir, como todas as demais ferramentas de comunicação, à vivência e à compreensão do processo kenótico do Verbo que se fez carne.

Concluindo: queremos parabenizar Moisés Sbardelotto pelo excelente trabalho. Que ele continue nos ajudando a compreender esses novos fenômenos, colocando-os a serviço do Reino de Deus. Recomendamos efusivamente a sua leitura e discussão. Só assim podemos progredir na compreensão dos fenômenos da comunicação e, em especial, da comunicação religiosa em nosso tempo. A história continua, contrariando os que haviam profetizado o “fim da história”, na certeza de que a técnica não substitui o humano, mas lhe oferece novas possibilidades de comunicação e de experiência do mistério que é Deus.

Cleto Caliman

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Conjuntura eclesial – Assembleia do Regional – 3.6.2013

C. Caliman, SDB

      Introduzindo: 50 anos depois do Concílio

 1.    A geração dos que fizeram a experiência da passagem dos tempos pré-conciliares (no pós-tridentino) para os anos pós-conciliares está diminuindo. A nova geração vê o Concílio pelo retrovisor da história que já passou!

2.    O desafio atual é ativar a nova geração para a importância do Concílio para o atual momento de “mudança de época” que vivemos hoje.

3.    Alguns dizem que a Igreja está em crise. Mas que tipo de crise? O discernimento aqui é necessário. Há os que afirmam haver uma crise por uma “rendição interior” (W. Kasper), por falta de entusiasmo, por resignação. Alguns já acham que é crise “terminal” e aguardam o “enterro” da Igreja. Mas porque não interpretar esse tempo de crise como dores de parto para um novo tempo histórico da Igreja?

4.    Para discernir o futuro da Igreja, proponho alguns pontos de reflexão:

        – Os caminhos da Igreja hoje passam pelo Concílio Vaticano II

       – Luzes e sombras no pós-concílio

       – Duas questões históricas da doutrina sobre a Igreja

       – Razões da nossa esperança

 1.    Os caminhos da Igreja hoje passam pelo Concílio Vaticano II

        Não podemos relativizar a importância do Concílio para a Igreja hoje. Seria no mínimo leviano de nossa parte. Mas sempre devemos fazer um esforço suplementar para continuarmos a superar as ambiguidades de sua interpretação.

 1.1.O papa Bento XVI em sua alocução ao clero da diocese de Roma de 14 de fevereiro passado, falando sem “script”, de forma espontânea, depois de explicar como entrou no Concílio como perito, aponta a primeira ambiguidade. Conforme o papa, houve dois Concílios: um dos Meios de Comunicação Social, que tinha como chave hermenêutica a política, portando, a questão dos interesses pelo poder (estamos em plena guerra fria). A hermenêutica política quer saber para que lado tende o Concílio, mais à direita, mais à esquerda… Outro era o concílio verdadeiro, dos bispos. Esse tinha como chave hermenêutica a fé. Busca o verdadeiro aggiornamento na volta às fontes genuínas da fé.

        Explica o papa Bento: a mídia interpretou o Concílio como “luta política” no interior da Igreja, em defesa de posições. Essa leitura que passou ao grande público, em muitos casos, também ao público interno da Igreja, é certamente ambígua. O Concílio real, da fides quaerens intellectum, ficou em segundo plano.

 1.2.A ambiguidade talvez não esteja só na versão da mídia. O mesmo papa Bento XVI nos aponta uma segunda ambiguidade que veio não do lado de fora, mas de dentro mesmo do Concílio. No decorrer do evento divergências invencíveis cavaram duas trincheiras: a do pequeno e aguerrido grupo dos que foram chamados de “tradicionalistas” e a dos assim chamados “progressistas”, que formavam a maioria conciliar. Essa avaliação foi feita em mensagem dirigida aos bispos do mundo inteiro em 13 março de 2009. Ele reclama que para os primeiros, os tradicionalistas, o magistério da Igreja chega só até o ano de 1962. Em nome de uma tradição que, na prática, é pós-tridentina, mais especificamente do séc. 18 e 19, eles rejeitam o Concílio. Por outro lado, alguns da ala chamada progressistas minimizam a tradição em nome do Concílio e do seu desenvolvimento.

       Segundo a interpretação de W. Kasper[1], os “progressistas” do Concílio renovam a validade da grande Tradição (com maiúscula), partindo das Escrituras e dos Santos Padres da Igreja. Realizam uma verdadeira volta às fontes. E afirma que eles foram os verdadeiros “conservadores” no sentido que o termo realmente expressa.

      No pós-concílio essas duas tendências e a gama de interpretações entre ambas acabam paralisando a Igreja. No pós-concílio alguns “progressistas” teriam assimilado teses que o Concílio não quis validar, por exemplo: desclassificar os Concílios de Trento e do Vaticano I (seriam “neomodernistas”). Mas o que o Concílio, na sua maioria se propôs e quis foi enraizar-se solidamente na grande Tradição da Igreja. Por outro lado, os tradicionalistas continuaram a questionar pontos essenciais do Concílio, partindo não da volta às fontes, mas de posições pré-conciliares do séc. 18 e 19!

 1.3.Como avançar? O primeiro e grande desafio é, sem dúvida, desamarrar o nó hermenêutico em que nos metemos nos pós-concílio, como condição de olharmos com clareza para frente. Para encurtar, distinguimos entre uma hermenêutica da continuidade e outra da descontinuidade. Elas não se excluem. Tem pontos de partida diferentes. A hermenêutica da descontinuidade só derrapa para uma mera ruptura com o passado da Igreja se ela é mal aplicada. Teríamos então uma nova Igreja totalmente diferente daquela que veio de Jesus Cristo. Por isso essa hermenêutica só pode tratar daquilo que acontece com a Igreja no decorrer da história, em sua “encarnação” histórica concreta. Ela trabalha a descontinuidade conjuntural, por exemplo, da era constantiniana, da cristandade e da teocracia medieval, do eclesiocentrismo.

        Por outro lado, a hermenêutica da continuidade pura e simples, linear, pode trair o próprio Concílio, como acontece com o tradicionalismo, que não distingue suficientemente entre o que seja estrutural e o que seja conjuntural. Por isso, a hermenêutica de continuidade tem que se definir como estrutural. Ela garante, na descontinuidade do tempo histórico, aqueles elementos insubstituíveis para a continuidade da Igreja de Jesus Cristo, tal como é atestada na parádosis apostólica, a Tradição, normativa para nós.

        Por fim, a hermenêutica que garante a genuína renovação querida pelo Concílio é, no fundo, obra do Espírito Santo e não “obra nossa”. Nesse sentido forte, ela é, sobretudo, “renovação espiritual” antes que renovação das instituições.

 2.    Luzes e sombras no pós-concílio

        Muitas coisas que aconteceram na Igreja depois do Concílio não podem ser colocadas na sua conta. Não aconteceram por causa do Concílio, mas pelo avanço das transformações socioculturais que vão se avolumando no caminho da história e, por consequência, atingem a Igreja. Não podemos cair, ingenuamente, na análise linear do post hoc, ergo propter hoc.

 2.1.É claro que houve “desvio de foco” em algumas questões fundamentais, como por exemplo, na interpretação do processo de secularização e sua confusão com o secularismo. Na verdade, o processo de secularização foi interpretado diretamente com a chave hermenêutica da “razão esclarecida”, que se liga ao individualismo moderno. Esse equívoco não pode ser atribuído ao Concílio. Ele distingue o sentido positivo do processo de secularização, acolhendo a autonomia legítima do mundo frente à religião, mas não frente a Deus (cf. GS 36).

        Mas a teologia da secularização dos anos 60 não esclareceu bem o sentido teológico positivo e crítico em confronto com a interpretação pequeno-burguesa. A meu ver esse equívoco permanece atoe hoje quando se fala da secularização. Uma teologia mais rigorosa trabalha a secularização não no viés da herança iluminista (da Aufklärung), mas a partir de suas raízes bíblico-cristã, na teologia da criação e na afirmação da encarnação do Verbo. A tese de F. Gogarten (+1967) é que a secularização tem suas raízes na história da fé bíblica a cristã. Valorizam a história e o mundo em sua autonomia criacional. Assim, o Concílio assume o mundo em sua mundanidade e autonomia de tal modo que a secularidade não anula a dimensão transcendental, mas lhe oferece história para se manifestar.

 2.2.Outro equívoco diz respeito ao desenvolvimento, na pós-modernidade, de uma pastoral que podemos chamar de “secularista”[2], justamente no sentido rejeitado pelo Concílio. Esse tipo de pastoral é marcado pelo imediatismo pragmático pós-moderno, por uma religiosidade eclética e difusa. Ele confunde salvação com prosperidade material, bem-estar físico e afetivo, autossatisfação e autoajuda. É uma religião “de mercado”, rentável! Ela pode até se apresentar como “nova evangelização”, mas só de fachada. É uma pastoral de palanque e de passarela, de esteticismo vazio. A verdadeira estética está longe desse arremedo. Ela cabe e bem na vida eclesial. Ela expressa a profundidade da existência frente ao mistério insondável de Deus. Deve ser buscada não para expressar as nossas “belezas”, mas a do mistério a que nossa fé nos aproxima. É esse mistério, essa fé, que devemos visar e “dizer”.

 3.    Duas questões históricas de eclesiologia

        Refiro-me aqui a dois pontos fundamentais para a compreensão teológica da Igreja: a relação entre Eucaristia e Igreja e entre Igreja invisível, espiritual, do carisma, e a Igreja visível, institucional, do direito. O primeiro ponto se tornou explícito na controvérsia eucarística entre o séc. IX e XI, sobretudo em torno de Berengário de Tours (+1088). Dá-se então a dissociação entre Eucaristia e Igreja. O segundo ponto se dá na Reforma do séc. XVI. Enquanto Lutero acentua a ecclesia abscondita, espiritual só conhecida por Deus, a Igreja católica acentua a Igreja visível e, portanto, a instituição (Belarmino).

        Quanto à dissociação entre Eucaristia e Igreja, a consequência foi que a Missa ficou sendo coisa do padre. Os fieis se contentavam em ver a hóstia. Por temor sagrado os fieis não se achegavam à comunhão! A hóstia foi se tornando objeto de devoção, da piedade popular. O remédio que o IV Concílio de Latrão (1215) receitou foi o preceito de comungar ao menos uma vez ao ano, pela páscoa da Ressurreição (cf. Denz. 812). Mas o remédio não foi suficiente. A reforma litúrgica do Vaticano II nos ofereceu uma compreensão mais profunda da íntima ligação que há entre Eucaristia e Igreja (cf. SC 10: “a liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força”). Mais recentemente, Tivemos a Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, de Bento XVI (João Paulo II, Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 2003). Enfim, a Igreja faz a Eucaristia e a Eucaristia faz a Igreja.

        O segundo ponto diz respeito à dissociação entre Igreja visível e invisível, terrestre e espiritual, humana e divina, que se aprofundou desde o séc. 16. Sua superação se deu graças também à doutrina sobre a Igreja da Lumen Gentium 8a. Aplicando o modelo calcedoniano para pensar a unidade pessoal em Jesus Cristo a partir da dualidade das naturezas divina e humana. Do mesmo modo, na Igreja o humano, visível, institucional e o divino, invisível, espiritual: uma dimensão não absorve a outra; nem o humano e o divino se misturam nem, ao contrário, se separam. Mas essas duas dimensões se distinguem entre si, cada qual se expressando em unidade do agir na diferença (Gregório Nazianzeno: duo physeis eis en syndramousai = duas naturezas num mesmo agir conjunto). Assim, “o organismo social da Igreja serve ao Espírito de Cristo que o vivifica para o aumento do corpo” (LG 8a).

        Essas questões históricas nos mostram como nossa compreensão de Igreja e a nossa pregação não podem ficar “em águas rasas”. Elas devem, sim, beber do mistério que dá sentido ao ser da Igreja no mundo, articulando coerentemente a dimensão divina – do mistério trinitário – e a dimensão humana – santificada pela encarnação do Verbo. Para aprofundar, proponho alguns pontos de reflexão:

        a) a eclesiologia não pode ser “pura doutrina da Instituição” (W. Kasper). Essa deficiência vem da eclesiologia jurídica, desde o séc. 14, e se prolongou até as portas do Vaticano II;

       b) a eclesiologia deve captar, antes de tudo, a Igreja povo de Deus como mistério. Ela é acontecimento da graça salvífica e libertadora de Deus para toda a humanidade;

       c) em vista disso, ela tem uma identidade recebida da Trindade, mediante a missão do Filho e do Espírito. Assim, ela é constituída historicamente como povo de Deus em comunhão;

       d) a eclesiologia tem uma dimensão necessariamente dogmática: a Igreja é historicamente determinada pelo princípio da encarnação. Por isso não pode ser interpretada em ruptura com Jesus de Nazaré (Jesus histórico), mas em continuidade na descontinuidade do kairós de Jesus e da Igreja. É o mesmo Espírito que age em Jesus e o assiste. É o mesmo Espírito que age, assiste e preside a Igreja em sua missão. É o mesmo projeto salvífico de Deus que se expressa nos vários tempos da história da salvação e, portanto, também em Jesus e na Igreja.

        O que acima afirmamos vai além das condições históricas e conjunturais da Igreja, que a moldam conforme os tempos. Vai diretamente à sua determinação teológico-dogmática: a Igreja é “povo” – tem estrutura histórica, social, institucional -; “de Deus” – recebe sua determinação última da Trindade. A Igreja é, assim, mistério de comunhão. A comunhão é o modo próprio de todo o povo de Deus ser diante de Deus e diante do mundo.

        Essa compreensão de Igreja impediu a Igreja Católica de acolher a tese da suficiência material da Escritura para a revelação: a sola Scriptura de Lutero. Fiel à grande tradição, a Igreja Católica manteve a interpretação de que a mesma Escritura precisa da Tradição e do magistério autoritativo[3], sub Verbo Dei, que garanta seu sentido salvífico para nós e não esteja submetido imediatamente ao discernimento subjetivo dos indivíduos.

 4.    Razões da nossa esperança

        O futuro da Igreja passa pelo escândalo e pela loucura da cruz, contra qualquer “docetismo eclesial”. O papa Francisco nos lembrou dessa verdade. Sem a cruz não somos verdadeiros discípulos de Jesus Cristo. A Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, nos oferece um itinerário de espiritualidade cristológica no n. 8c, que não podemos deixar de lado, confrontando a Igreja com o seu Senhor. Não podemos correr atrás nem dos “profetas da desgraça” que destilam seu pessimismo ou os que já decretaram a morte da Igreja. Estaria com a data de validade vencida! Mas pelo jeito se enganaram até agora; nem do “otimismo barato” que se agarra de maneira quase mágica às divinas promessas de Cristo e da assistência do Espírito Santo até o fim dos tempos, sem o zelo apostólico pela missão.

        Uma Igreja da glória, meramente carismática e triunfante, sem as tribulações próprias do caminho histórico, sem conflitos, indicaria uma eclesiologia insuficiente e reducionista. Aqui apelo para o testemunho insuspeito de Karl Barth. Ele se manifesta contra o mal-entendido de uma Igreja sem a dimensão institucional, apenas carismática e afirma: a Igreja é “a forma da existência terrena e histórica de Jesus Cristo” (Kirchliche Dogmatik, IV/1, par. 67, 729s).

        Prova mais que suficiente de que a Igreja tem futuro, e mantermos firmes essa esperança, é que em no séc. 20 e 21 a Igreja peregrina pode apresentar a Deus os seus mártires. O sangue dos mártires continua sendo semente de cristãos… O Espírito Santo, pelo jeito, não assume o “enterro” da Igreja. Ele quer é levar adiante a tarefa de renovação espiritual, da qual o Concílio Vaticano II se constitui um momento privilegiado. A renovação espiritual é a grande obra do Espírito Santo que opera no corpo eclesial para a vida do mundo.

[1] A Igreja Católica. Essência, realidade, missão. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2012. Cf.  I. parte: Meu caminho na Igreja e com ela, pp. 17-67. O Autor faz uma espécie de autobiografia eclesial e eclesiológica. Vale a pena ler.

[2]   BRIGHENTI A. Por uma Evangelização realmente nova. Perspectiva Teológica 125 (2013) 83-106. 93s.

[3]  RATZINGER J. Primat, Episkopat und Sucessio apostolica. In; RAHNER K. – RATZINGER J. Episkopat und Primat QD 11). Freburg in Br. 1961, pp. 37-59. “A sucessão é a forma concreta da tradição; a tradição é o conteúdo da sucessão”.

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O projeto da nova evangelização

C. Caliman, SDB

 O Sínodo dos Bispos se reune agora, outubro de 2012, para tratar do tema: Nova Evangelização para a Transmissão da Fé. O Instrumentum Laboris (=IL) traz no cap. II a pergunta pela nova evangelização (=NE) e a descrição dos vários cenários onde a missão evangelizadora deve se desenvolver nos nossos tempos. Pelo que me parece, o IL passa ao largo da compreensão da NE que está implicada no Documento de Santo Domingo (=DSD),  20 anos atrás, como resposta à nova situação missionária da Igreja na América Latina e Caribe. Por isso, me proponho brevemente resgatar essa compreensão, implicada no texto do DSD.

O processo para uma evangelização renovada já vem sendo plantado há bastante tempo. Pelo menos desde os esforços de renovação da Igreja e de sua missão no mundo que prepararam o Concílio Vaticano II.

Desde quando se começa a falar explicitamente de NE?  A expressão foi usada, que me consta, pela primeira vez na Mensagem aos povos da América Latina,  aprovada pela II Conferência Geral do Episcopado latino-americano de Medellín, 1968. Ali já se propunha “alentar uma nova evangelização (…) para obter uma fé lúcida e comprometida”[1]. Mas foi a partir do discurso do Papa João Paulo II à Assembléia do CELAM, no Haiti, em 1983, que a discussão se aprofunda. O Papa  dizia que a NE devia ser nova no ardor, nos métodos e na expressão.

A preparação da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Santo Domingo, por ocasião dos 500 anos da evangelização do continente, foi marcada pelas discussões ao redor da questão da cultura, mais precisamente, da “cultura cristã”, que aparecia no enunciado do tema proposto: Nova Evangelização, Promoção humana, Cultura cristã[2].

O que interessava, então, nesse enunciado, não era a expressão em si mesma, mas o que faz a evangelização realmente ser nova. Havia sérias divergências quanto à interpretação e avaliação dos 500 anos de evangelização do continente, à visão da realidade, à compreensão da cultura, à visão de Igreja e à teologia que deveriam presidir essa nova evangelização, como resposta à nova situação missionária no limiar do terceiro milênio do cristianismo. Nessa discussão me limito a alguns pontos: 1) a interpretação dos 500 anos de evangelização; 2) a virada para que a evangelização seja nova; 3) quais são os marcos dessa nova evangelização em nosso continente.

 

1. Como avaliar os 500 anos da evangelização no Continente?

 

Para avaliar corretamente a evangelização do Continente latino-americano, sem cair no triunfalismo dos conquistadores e sem diminuir o valor libertador da resposta da fé de indígenas e negros, apesar da violência dos conquistadores, é necessário, antes de tudo, distinguir sem separar entre Evangelho e processo de evangelização; entre a mensagem sempre nova e libertadora de Jesus Cristo e suas expressões históricas.

Fazendo essa distinção, podemos, com liberdade, avaliar o processo de evangelização como histórico, no tempo e no espaço humano, submetido a limites culturais e ideológicos. Como processo histórico, ele assimila formas sociais, políticas e culturais do exercício do poder. Ao mesmo tempo, deve-se afirmar que o Evangelho, como Palavra livre e soberana de Deus, é anúncio libertador de um sentido radical para a humanidade em qualquer tempo e situação histórica. Assim se garante que o Evangelho foi acolhido pelos humildes e pobres – indígenas, negros ou brancos – e se tornou força de esperança e resistência contra a opressão, apesar do sistema colonial. O Evangelho acolhido deu seus frutos no coração do povo latino-americano. Esse Evangelho continua sendo critério e medida do processo de evangelização nos diferentes contextos históricos.

Com esses pressupostos, o processo de evangelização do continente pode ser interpretado, observando as condições históricas reais em que se deu: sob a dominação colonial, impondo aos povos indígenas e, mais tarde, aos africanos, a hegemonia cultural dos conquistadores como instrumento de evangelização. Essa relação entre evangelização e cultura ocidental continua ainda na formação dos estados independentes, pela implantação de um modelo de Igreja trazido da Europa. Para maior clareza distinguimos três ciclos do processo de evangelização na América Latina. 

O primeiro ciclo corresponde à evangelização ligada ao projeto colonial. É o ciclo colonial. Com o processo de “mundialização” do sistema ocidental dá-se também o fenômeno da “expansão” missionária da Igreja no Terceiro Mundo, em especial na América Latina. Ao primeiro ciclo de expansão missionária, ligado ao projeto colonial, corresponde a primeira evangelização do Continente latino-americano.

Já o segundo ciclo da expansão missionária da Igreja corresponde ao fim do sistema colonial, com a implantação dos estados nacionais. Este ciclo pode ser chamado também de eurocêntrico. Aqui o processo de evangelização já não é mais presidido pelo poder colonial. Seu percurso é outro, vem da Europa, através de uma ação presidida e coordenada por Roma e levada adiante através de corpos apostólicos especializados, sobretudo das Ordens e Congregações religiosas. Essa pode ser chamada de segunda evangelização.

O terceiro ciclo de evangelização tem sua força não mais no poder colonial, nem mesmo na consciência de sermos uma Igreja romana, mas na consciência da Igreja situada num lugar concreto, cultural e historicamente modelada. Esse ciclo pode ser chamado de policêntrico. Essa nova fase da evangelização pressupõe a nova consciência eclesial da Igreja na América Latina, a partir da sua inserção num espaço humano concreto. Os dois primeiros ciclos evangelizadores tinham o seu centro fora do continente. O terceiro tem seu vigor e força na experiência eclesial que faz o seu caminho não como espelho de experiências que chegam de fora, mas como fonte de novas experiências eclesiais e de inserção na sociedade. Essa é, no meu entender, a nova evangelização em curso. Esse novo ciclo foi fortemente impulsionado pelo Concílio Vaticano II.

 

2. Em que consiste a novidade desse novo ciclo?

 

Essa novidade diz respeito ao modo original de como a Igreja na América Latina e no Caribe vai moldando a sua identidade e encontrando novas expressões do Evangelho. Assim, os sinais dessa nova etapa, fermentada pelos movimentos de renovação que prepararam o Concílio Vaticano II, se tornam mais evidentes na efervescência de novos processos sócio-políticos e eclesiais. A partir dos anos 50 do século XX os observadores anotam a confluência de dois movimentos que sopram na direção da transformação, com profunda repercussão entre nós. O movimento social latino-americano sopra na direção da mudança social. O movimento de renovação eclesial abre-a a uma nova compreensão da Igreja e de sua relação com o mundo. Esse duplo processo de renovação se verifica na emergência do pobre como sujeito social e eclesial. A sua expressão privilegiada são as novas práticas eclesiais como CEBs, leitura popular da Bíblia, pastorais sociais entre outras, e pelo compromisso dos cristãos nas lutas de libertação.

Esse fermento novo na Igreja latino-americana se expressa, de forma crescente e vigorosa, nas cinco Conferências Gerais do Episcopado latino-americano: do Rio de Janeiro (1955), de Medellín (1968), de Puebla (1979), de Santo Domingo (1992) e, recentemente, de Aparecida (2007). Essas grandes assembléias têm um significado simbólico profundo na superação tanto da primeira quanto da segunda evangelização do Continente.

 

3. Quais são os marcos desse novo ciclo de evangelização?

 

O primeiro marco pode ser definido pela consciência da dimensão social da fé. Esse marco pode ser percebido já na Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, do Rio de Janeiro, em 1955, no Colégio Santa Úrsula. As Conclusiones[3] revelam o clima tridentino ainda reinante quer nos vários temas propostos à reflexão quer na sua abordagem. Mas nelas já se faz presente o fermento novo da consciência da dimensão social da fé dos anos 50 do séc. XX, sob a inspiração dos movimentos de Ação Católica, atuantes pelo Continente e, no Brasil, com a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB.

O segundo marco situa-se na passagem do Vaticano II para Medellín (1968). Aí se manifesta uma nova visão da realidade. A resposta da Igreja do Continente já se esboça na Assembléia Extraordinária do CELAM, em Mar del Plata (1966), sobre A Igreja na América Latina: Desenvolvimento e Integração. Sob o impulso do Concílio, a Igreja latino-americana toma consciência dos desafios que lhe são próprios e da exigência de respostas adequadas em nível continental. A recepção do Concílio, esboçada por Medellín, não passa pela perspectiva do Primeiro Mundo, onde o mundo moderno se apresentava triunfante e vitorioso; mas pela perspectiva do Terceiro Mundo, onde se revela a face oculta do sistema de dominação, que gera a injustiça institucionalizada. O pobre é visto agora não apenas como indivíduo isolado, mas como um dado da realidade social. A pobreza que se manifesta não é mero fruto do acaso. É produzida. Na estrutura injusta e desigual da sociedade, o pobre é oprimido.

Medellín vai além do Concílio, colocando como eixo de sua reflexão não simplesmente o mundo e o homem contemporâneo em geral, mas o homem latino-americano em sua realidade conflitiva. Apropria-se de ferramentas de análise da realidade das ciências sociais. Define a missão da Igreja não exclusivamente a partir dos princípios da fé, em abstrato, de cima para baixo, mas volta a sua atenção à fé vivida no contexto da realidade sócio-cultural do Continente.

O terceiro marco acontece em Puebla, com a busca de uma nova estratégia pastoral. Entre um e outro evento foi importante o Sínodo dos bispos de 1974 sobre A Evangelização no Mundo Contemporâneo. Ele deu origem à Exortação Apostólica pós-sinodal Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI (1975). Esse Sínodo acolheu, sobretudo, as preocupações pastorais e as experiências das Igrejas do Terceiro Mundo, projetando-as para o conjunto da Igreja[4]. Por isso, teve grande repercussão nas Igrejas do Terceiro Mundo, em especial na América Latina, por se verem nele espelhadas.

A Assembléia episcopal de Puebla (1979) pode ser caracterizada pela busca de uma nova estratégia pastoral no quadro polêmico das interpretações conflitantes do Concílio e de Medellín, entre a nova consciência eclesial, sob o influxo das práticas e da teologia da libertação, e o refluxo pós-conciliar neoconservador, que pretendia frear o impulso inovador na Igreja. Concretamente, no campo eclesial se manifesta uma divergência na entre aqueles que interpretam o Concílio como limite além do qual não se pode passar, sob pena de desvio de rota e os que, olhando para o futuro, o vêem como luz e fonte de inspiração para a renovação da consciência das Igrejas particulares.

Essa divergência se manifesta, então, em vários pontos. Por exemplo, na visão da realidade, alguns acusam o método “ver-julgar-agir” de utilizar instrumentos de análise de cunho marxista; outros, ligados às novas práticas eclesiais e à teologia da libertação, as ciências sociais eram consideradas mediações necessárias para construir uma visão crítica. Quanto à Igreja, se contrapõem uma visão mais voltada para dentro, e outra mais voltada para a realidade conflitiva, através de uma opção consciente e decidida pelos pobres e de novas práticas comprometidas com o povo. No campo teológico confrontam-se uma visão mais ligada aos centros tradicionais, produtores de teologia, e outra que já incorpora as experiências renovadoras das Igrejas emergentes do Terceiro Mundo e suas práticas libertadoras.

Enfim, Puebla confirma as opções básicas de Medellín. Explicita uma nova estratégia pastoral para a Igreja no Continente, visando uma Igreja de comunhão e participação a partir dos pobres. Esse passo significa a superação da estratégia pastoral constantiniana, baseada na aliança da instituição eclesiástica com o poder político. O eixo do processo de evangelização não passa agora pela aliança com o poder de estado ou de classes sociais, mas pela evangélica opção pelos pobres, no campo aberto da sociedade conflitiva, pluralista e desigual.

O quarto marco da NE em curso está ligado à preocupação com a cultura e os sujeitos culturais, o que sugere uma chave nova ligada à pedagogia pastoral para a NE. Em 1992, já antes da Conferência de Santo Domingo, imaginava a possível originalidade de Santo Domingo: A abordagem da dimensão da cultura conduzirá certamente à busca de uma pedagogia pastoral, adequada ao continente e às exigências de sua complexa realidade pastoral, por uma inculturação da fé a partir da riqueza cultural dos povos latino-americanos[5].

Não pretendo entrar nos detalhes da renhida disputa de posições na preparação e na realização de Santo Domingo. A Primera Redacción del Documento de Consulta de 1989 era um documento sigiloso. Defendia teses teológicas ligadas ao integrismo eclesiástico do s. XIX, em total descompasso com a consciência eclesial pós-Vaticano II, Medellín e Puebla[6]. Da Primera Redacción ao documento final, apesar das dificuldades e entraves da preparação, nota-se um grande progresso na definição do que se deve entender por NE. O Documento final exige a articulação entre promoção humana e inculturação como dimensões constitutivas da nova evangelização.

Primeiro, a NE exige a promoção humana. Em Santo Domingo o foco dessa promoção humana não está simplesmente na questão econômica ou política. Ela deve ser entendida no sentido da libertação integral. Ou seja, no fato de promover a pessoa humana, especialmente o pobre, enquanto sujeito, capaz de construir solidariamente a história com os outros. Por isso, a NE, para ser nova, deve reconhecer o outro como sujeito. Por isso, a evangelização que não é capaz de promover a pessoa como sujeito na sociedade e na Igreja, no sentido de sua libertação integral, não é ‘nova’ evangelização. Simplesmente reproduz a antiga em outro contexto histórico.

Os documentos de Medellín e Puebla foram marcados por forte sensibilidade sócio-política. No novo contexto dos anos 90 do séc. XX a sensibilidade está marcada pela dimensão sóciocultural. Por ela começamos a reconhecer as diferenças dentro do sujeito coletivo, definido genericamente como “o pobre”. Dentro do bloco histórico dos pobres encontramos as diferenças de gênero, de etnia e de cultura. Mais adiante entra a preocupação com o cuidado da criação, com a ecologia.

Sem o reconhecimento do outro como sujeito, voltamos aos processos anteriores da evangelização que exigiam a submissão e a negação do outro como sujeito histórico. Nessa situação, o pobre é dominado pelo senhor, o índio reduzido ao branco, o negro escravizado, e a mulher submetida ao homem.

Segundo, outro dado fundamental para interpretar a mensagem de Santo Domingo é a evangelização inculturada. A NE deve ser inculturada. Aqui vai uma reflexão não só de antropológico-cultural, mas também teológica. A inculturação se compreende teologicamente em analogia com a encarnação. O Filho de Deus, pela encarnação, se insere na história, numa cultura que antes não lhe cabia. No fenômeno da inculturação o sujeito humano vai ao outro, já culturalmente situado, a partir de sua própria cultura. Na evangelização inculturada, o evangelizador deve respeitar a cultura do outro, seu modo de ser. A partir da diferença, ele testemunha a sua fé e o Evangelho de Jesus Cristo.

Os debates preparatórios da Assembléia de Santo Domingo evidenciaram duas tendências na abordagem da questão da cultura e inculturação[7]. A primeira tendência compreendia a cultura como consciência consolidada de um grupo social. Apresenta formas culturais já assentadas na história. A tentação dessa corrente tende a compreender a “cultura cristã” como “meta-cultura”, identificando-a sem mais com a cultura ocidental, considerada cultura superior. Nesse contexto, a expressão “cultura cristã” cai facilmente sob suspeita ideológica de ‘trabalhar’ para uma visão de cristandade.

Já a segunda tendência busca uma compreensão dinâmica e processual. Para ela a cultura se apresenta como processo ligado ao mundo vital das pessoas, dos sujeitos históricos concretos. Esse mundo vital dos sujeitos culturais é diferenciado, plural. Neste sentido, a evangelização, para ser nova, deve partir do pressuposto de que qualquer cultura é chamada a ser cristã, ou seja, a responder à convocação de Jesus Cristo em vista do Reino de Deus. Essa tendência prefere falar de evangelização inculturada, da riqueza cultural de nossos povos e da inculturação do Evangelho nas culturas.

No meu entender, a contribuição de Santo Domingo vai ser complementada pela Conferência de Aparecida (2007). Ela constitui o quinto marco da NE em curso. Mas em que sentido? De modo sumário, diria que a mensagem de Aparecida quer responder ao cenário da mudança de época que a assim chamada pós-modernidade leva adiante. Aparecida quer responder ao fenômeno do pluralismo cultural e religioso, ao individualismo e aos demais fatores que diluem e enfraquecem a fé. Por isso, aponta para o fortalecimento do sujeito da fé. Seu ponto forte é o no. 226. É um programa de pastoral para a NE. O primeiro item define os demais: a experiência de um encontro com Cristo. Por isso, pode-se dizer que o foco do Documento de Aparecida é a espiritualidade que tem como centro a ligação do sujeito da fé com a pessoa de Jesus Cristo e o seu seguimento.

O tema do Sínodo dos Bispos – Nova Evangelização para a Transmissão da fé – nos coloca frente à crise do paradigma tradicional de transmissão da fé e desafia a criatividade das Igrejas na busca de novos caminhos para responder à urgência da evangelização hoje. Esse tema vem de encontro à preocupação das Igrejas hoje de refazer o caminho que vai da fé vivida pelo fiel e a fé proposta pela tradição da fé desde os Apóstolos[8]. A atenção aos sujeitos da fé deve marcar o processo da NE em vista da experiência da fé testemunhada e passada adiante, graças à ação do Espírito Santo.


[1]    CELAM, A Igreja na atual Transformação da América Latina à Luz do Concílio, Petrópolis: Vozes, 1971, 3ª ed., p. 39.

[2]    Logo depois da Conferência de Santo Domingo me propus fazer uma leitura do conjunto do documento. Cf. CALIMAN C. Conclusões de Santo Domingo. Roteiro de estudo. Convergência 262 (1993) 224-249.

[3]    Pro manuscripto, Poliglota Vaticana, 1956.

[4]    Cf. M. CARVALHEIRA, G. DUPONT, A. C. QUEIROZ, G. GORGULHO OP, J. B. LIBÂNIO SJ, a Evangelização no mundo de hoje. Reflexões teológico-pastorais, São Paulo: Loyola, 1975.

[5]    CALIMAN C. Das Diretrizes a Santo Domingo/92”. Em Diretrizes 1991-1994. Caminhada-desafios-propostas. Estudos da CNBB 64 (1992) 32.

[6]    As principais teses da Primera Redacción foram apresentadas por J. Comblin, “O Ressurgimento do Tradicionalismo na Teologia latino-americana”, Revista Eclesiástica Brasileira 197 (1990) 44-75. A resposta da CNBB ao CELAM dizia que o “Documento de Consulta” assim como estava era inadmissível.

[7]    A análise da questão da cultura e inculturação se apóia em F. TABORDA, Nova Evangelização, Promoção humana, Cultura cristã. Leitura crítica dos três conceitos e sua articulação no Documento de Santo Domingo. Trabalho apresentado à Equipe de Reflexão Teológica da CRB, dezembro de 1992, p. 9ss.

[8]    ANTONIAZZI A. CALIMAN C. A pastoral católica: do primado da instituição ao primado da pessoa. Em: FABRI DOS ANJOS M. (Org.), Sob o Fogo do Espírito. SOTER – Paulinas, 1998, pp.229-260.

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Cristologia – 13

Cleto Caliman

1.4. O caminho para a morte

Bibliografia: LOHSE, E. A história da paixão e morte de Jesus Cristo. Paulinas, 1977. SPEIDEL, K. A. O julgamento de Pilatos. Para você entender a paixão de Jesus, Paulinas, 1979. MESSORI, V. Hipótese sobre Jesus. Paulinas, 1978. COUSIN, H. O profeta assassinado. Paulinas, 1978. MOLTMANN J. Il Dio crocifisso. Queriniana, Brescia, 1975. KASPER, W. Jesus der Christus. Mainz, 1974, 132-44. FAUS, J. I. G. Acesso a Jesus. Loyola, 1981, 65-96. Idem, La humanidad nueva I. 124-45. KUNG, H. Ser cristão, 275-96. BOFF, L. Jesus Cristo Libertador, 113-33. Idem, Paixão de Cristo, Paixão do Mundo. Vozes, 1977. SOBRINO, J. Cristologia desde América Latina, 153-199. Idem, Jesus, o Libertador, Vozes, 1994, pp. 287-337.

Em dado momento de sua vida Jesus percebeu que não poderia voltar mais atrás no caminho histórico que havia…

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A Missa nossa de cada Dia

(Um exercício de imaginação)

C. Caliman

 Ensaio de 1977

A comunidade crente reúne-se periodicamente para celebrar a eucaristia. Jovens e velhos, homens e mulheres, crianças e adolescentes, gente de todos os matizes e cores, na diversidade de linguagens, culturas e posições sociais, sentam-se lado a lado no mesmo culto. Todos lá estão para “assistir missa”, diz-se comumente, enquanto o padre, lá no altar, faz às vezes do Senhor Jesus. Ele então “diz missa” ou simplesmente “reza a missa” pelos pecadores.

Essa maneira típica de falar da eucaristia na Igreja católica não é nova. Já deve ter melo menos mais de um milênio de uso. No entanto, é de se notar que, entre expressões que vão e vem, na linguagem das pessoas que freqüentam a Igreja, há certa mudança na nomenclatura em torno das atividades que acontecem numa Igreja. Há os que adiantam um novo modo de falar sobre o assunto. Já não se exprimem numa forma, diria “dualista”: nós de um lado e o padre do outro, mas de uma forma mais globalizante, envolvendo-se também na atividade, como quem participa na produção da celebração. Vão para a Igreja “celebrar a eucaristia”, participar da “reunião da comunidade” e outras expressões que tais. Variam os nomes. Isso é revelador de uma nova vertente da prática da Igreja, novas motivações e diversa compreensão do mesmo mistério e da mesma celebração.

As motivações dos que vão à missa/eucaristia dos cristãos são bastante variadas, ao menos tantas quantas são as visões religiosas que se espalham pela praça da Igreja. Nem sempre estão de acordo com o sentido original do sacramento instituído pelo Senhor para que recordássemos o sentido último de sua vida e as implicações de sua atividade histórica. O sentido original de sua vida, manifestado profeticamente na sua ceia derradeira, às vésperas de sua morte na cruz e gloriosa ressurreição, escapa a alguns, que nem se percebem ligados à sua história pessoal. Alguns não chegam à compreensão e ao significado que lhe concederam devotamente as primeiras comunidades dos crentes.

O sincretismo religioso esparramado por todos os lados, inevitável e também ele com seu significado histórico, se encarregou de infiltrar significados muitas vezes alheios ao sinal da fé, na medida em que projetou sentimentos estranhos à tradição. Por outro lado, mesmo nos muitos fiéis assíduos de nossas paróquias e capelas reduziu-se a missa a um ato de piedade individual, a uma devoção, ofuscando o significado mais profundo da eucaristia e seu conteúdo eclesial: a unidade da comunidade que é significada e realizada pela mesma realização da memória do Senhor morto e ressuscitado na eucaristia da comunidade reunida.

Neste contexto, estabeleceu-se soberano o legalismo e seu parceiro o ritualismo. Estes estancaram ainda mais o dinamismo real da comunidade fraterna e isolaram o sinal da fé posto na comunidade pela consideração asséptica da hóstia consagrada, posta no altar do Senhor e no sacrário solitário. Isolado na solitária prisão, o Senhor, presente no sinal do pão e do vinho, deixou de conduzir suas ovelhas para o mundo em seu nome. Na prática eclesial tradicional chegou-se a uma paradoxal celebração multitudinária e massificante, ao mesmo tempo em que individualista e privatizante.

A piedade particular ao SS. sacramento do altar ou ao prisioneiro do tabernáculo parecia ter chegado ao ponto de ter abafado e mesmo dispensado a comunidade que constitui o quadro da celebração. Chegou-se com facilidade à celebração “privada” das muitas e freqüentes missas de devoção, celebradas nos retalhos de Igreja ou nos recantos da sacristia, colocando-se em recesso a mediação fundamental e criadora da comunidade reunida na ação de graças, no sacrifício de louvor, na memoria passionis, mortis et ressurrectionis Jesus Christi “pro nobis”. A comunidade real não tinha, de fato, nada a dizer neste contexto. Ela já fora posta fora do templo sagrado, no qual o sacerdote seria o único a penetrar, buscando a ligação perdida. A assembléia passou a ser uma peça decorativa do drama representado em nome de Cristo no altar. O fiel, distanciado do sacramento da unidade, também não encontrava o caminho para descobrir o irmão que estava a seu lado.

O juridicismo dispensava a procura do outro na missa multitudinária. Bastava a presença solitária na multidão e a essencial referência de cada um dos cristãos com o vigário ou o sacerdote celebrante, representante plenipotenciário de Cristo naquele momento solene e sagrado. Nada mais. Neste contexto, cada qual recebia seu devido lugar. Jesus Cristo, glorioso e vencedor da morte, no céu à direita de Deus Pai, foi reduzido neste espetáculo monótono à condição de prisioneiro do tabernáculo, como fugitivo do mundo e dos compromissos assumidos solenemente na encarnação, à espera da consolação daqueles que lhe desejam melhores dias; ele está como que morto na hóstia, sem forças, sem vigor, sem dinamismo, cerceado nos limites das “espécies”, chorando as ofensas recebidas e o desprezo dos que não o adoram e veneram. Ele se especializou como o “Senhor das dores”, na alegoria da morte, na ruptura da unidade vital de uma antropologia dualista em que corpo e alma, pão e vinho, corpo e sangue estão pela divisão do homem e não pela sua qualificação na totalidade de uma presença que se entrega, mesmo à custa do sacrifício, do sangue, da imolação de si, por nós. Dividiu-se o Cristo, Separou-se a esperança da saudade. A saudade ficou para a missa, enquanto a esperança havia fugido para a devoção particular, para os conventos reunidos na meditação matutina ou na meditação dos fiéis mais achegados à Igreja conventual e recolhida.

Jesus recebeu a parte que lhe cabe nesta história dos homens. No máximo é de seu direito o tabernáculo. Jesus na solidão dessa cadeia é a imagem, talvez triste figura de uma Igreja, mais do que isso, de uma realização histórica de Igreja distante do mundo, desencarnada, que volta saudosa ao “sancta sanctorum” do qual seu Senhor a havia libertado desde o início, rasgando o véu do templo de cima até embaixo. Ela voltou para o sagrado, como ao seio materno, para obter proteção e espantar os demônios do mundo, do século, expulsando o medo da história, no recolhimento sobre si mesma, curtindo o receio de acompanhar os passos dos homens pelos caminhos do mundo, tremendo diante do horizonte aberto d vida, preferindo o passado, mesmo morto, mas que não incomoda.

O Cristo-hóstia, prisioneiro do tabernáculo, mais se parece com o “Senhor morto” do catolicismo popular do que o glorioso da proclamação pascal. No tabernáculo, sem desmerecer seu significado de reserva “alimentar” para o cristão que vive no dia-a-dia, e seu sentido de sinal da comunhão real que deveria existir em relação aos irmãos doentes e necessitados, é conservado e retido pela saudade. Perde-se, assim, o sentido de sinal de comunhão total do corpo eclesial de Cristo disperso nos seus muitos membros pelo mundo, pela paróquia afora, na doença, na fadiga, no descaso, na velhice esquecida. No sacrário dourado, objeto de devoção, Jesus poderá na verdade parecer um objeto de museu, um “Senhor” mumificado, coisificado, objetivado, manipulado para satisfazer as necessidades religiosas de alguns devotos, petrificado, impotente. O encanto retém seus fiéis encantados a seus pés, sem os enviar para a messe do mundo, anestesiados no solilóquio, no balbucio infantil, na lágrima de consolação, na dor de vê-lo assim tão desprotegido diante da sanha do mal, tão só e tão distante da cidade dos homens. Detido pela saudade de vê-lo, na contemplação, fora da cidade, no calvário, na cruz, fora dos muros, isolado, porém, do dinamismo de sua vida que para lá o conduziu e da vitória sobre a morte na páscoa da ressurreição.

Essa caracterização acima representa uma crítica, quem sabe, um tanto severa à tradição eucarística medieval e pós-tridentina. Mas a Igreja evolui, sob o sopro do Espírito que a habita no seu caminhar histórico, apesar de suas falhas. Esse sopro chegou reforçado no Vaticano II, no que a Igreja marca sua solene entrada para o mundo contemporâneo. Entrada simbólica é claro, pois ela nunca deixou de se posicionar diante do desenvolvimento da história. Também quando ela se retraiu para uma posição isolada e solitária, foi uma tomada de posição em função de um “desenvolvimento em separado”, um divórcio conflituoso com a sociedade moderna, sem dever nada a ninguém, muito menos aos homens que até se dizem ateus, a-religiosos, anticristão ou simplesmente e nada mais do que do que anticlericais. Esse passo de retorno, fruto de um ingente esforço histórico de muitos cristãos comprometidos, foi longamente preparado por uma série e movimentos e rupturas, pequenos ou grandes, mas que contribuíram com sua modesta participação na superação do velho edifício estrutural e organizativo da Igreja na sua forma de cristandade.

Esse é o grande evento da Igreja no século XX. Ele marca uma retomada da vida da Igreja passo a passo com a história dos homens, na sua função primordial de sinal da salvação libertadora de Jesus Cristo, sem pejo, com coragem; sem mistura, com autenticidade. Tal passo constitui um novo elo para criar um novo arranjo histórico da Igreja com a sociedade na qual ela se insere como sinal da fé, como consciência histórica e crítica da dignidade do homem como filho de Deus e criatura. Ciente de suas responsabilidades, a Igreja busca vigorosa e velozmente uma renovação interior e uma reavaliação de suas relações com o mundo do qual faz parte como fermento na massa.

Reflexão sobre a presença de Cristo na Igreja e no mundo sempre houve e nem vai ser essa a última vez que se coloca o problema que debatemos. Sempre vai haver a recolocação dele nos moldes das novas experiências históricas que os homens vão realizando na sua vida. Ela, no entanto, é-nos mediatizada nos diferentes modelos racionais tomados de empréstimo das várias filosofias, do senso comum, da tradição bíblica e cristã. O que se coloca aqui mais do que acolher ingenuamente qualquer novidade que vem pela frente, como se a mera mudança de instrumento criasse o bom músico, é estabelecer uma visão nítida do que seja a atualização que se opera no nível das representações simbólicas, na linguagem e nos instrumentos de comunicação religiosa. Há ainda aquela outra atualização que se opera na prática de vida da comunidade e daí cresce e ascende para a consciência, à reflexão, à representação simbólica, às formas sacramentais e lingüísticas que a comunicam no sistema comunitário.

Um primeiro passo será, pois, descobrir que a renovação conceitual e lingüística da liturgia e da teologia ainda não esgota o manancial da renovação da Igreja. Isso é só reboque novo para velhas paredes. Paredes novas e colunas recambiadas só mesmo o que fornece é a prática nova de vivência cristã na comunhão fraterna. Renovar a linguagem, descobrindo novos horizontes de como expressar velhos dogmas poderá vir de encontro à satisfação intelectual dos letrados de todos os matizes. Eles poderão depois até se orgulhar por terem inventado novas teorias explicativas que os “minores” não conseguem “pegar”. Tais explicações estarão mais ou menos de acordo com os modelos científicos galileanos, marxianos, freudeanos et caterva, estarão enfim mais de acordo com a compreensão filosófica do mundo de hoje ou com a famosa “comunidade científica” dos teólogos de escola.

Tudo isso pode ser até muito bonito, mas em nada ou quase nada influirá nas práticas das pessoas e das comunidades, a não ser o de empurrar a vida e a solução dos problemas um pouco mais adiante. A celebração da Palavra e dos sacramentos, afora os arranjos modernizantes, vai continuar desgarrada da vida dos cristãos e dos homens de hoje. Vai-se de novo celebrar a presença de Cristo, agora dentro da nova onda, como glorioso, pascal, ressuscitado e celeste, pois não se usa mais do “outro” Jesus – no meio dos aleluias e das emoções espirituais que os espetáculos bem emoldurados conseguem suscitar. Outros tempos, outros modos. No rito, pois, a vida continua de outra forma, regida por outras normas, por outra ética que não a de Jesus Cristo. Ela continua no trilho do individualismo, agora camuflado num personalismo pregado por muitos e compreendido por poucos. Ele não consegue fazer chegar o sujeito ao complexo comunicativo da comunidade. A vida continua ritualizada na sua realidade crua e nua pelo sistema econômico, político e cultural da sociedade que a organiza.

A celebração em si mesma, é claro, pode ser renovada, mesmo nestas condições. Também os teatros vão mudando. Não se assiste teatro como antigamente. Agora os moldes são diversos, novas são as roupagens que a cobrem (a celebração), dispensando os velhos adereços. Nova é a linguagem, agora permeada de personalismo, cheia de apelos de comunhão, participação e de comunicação intimista, batida pelos ventos da psicologia burguesa, recolhida dentro dos moldes vividos pela massa dos fiéis que freqüenta os edifícios onde se estabelece uma comunicação ampliada pelos instrumentos de comunicação de massa, num tom exortativo, o mais das vezes moralizante. Mais do que isso não se poderá esperar de uma celebração nos quadros de uma sociedade afluente. Se nossas esperanças de renovação na Igreja estiverem ancoradas neste mar, vamos apanhar pouco peixe. Os instrumentos não evangelizam a Igreja. Sua mensagem é a mesma da sociedade que os cria, não é o da celebração da memória do Senhor até que ele venha.

O dito acima mostra como é radical a influência da prática tanto social quanto eclesial na vida e celebração da fé nos sacramentos, principalmente na eucaristia. Se a eucaristia é dom de Cristo à sua Igreja, não podemos deixar de perceber que a celebração e seus adereços culturais são produto do nosso modo de nos comportarmos em sociedade e em Igreja. A nossa contribuição, o nosso produto de consumo, anual, mensal, semanal ou mesmo diário, é a organização da celebração no que ela tem de rito e encanto estético, no que ela tem de garra crítica ou de alienação. A celebração enquanto nossa celebração é fruto de nossas trocas sociais e eclesiais, de nossas relações estruturais, passando muitas vezes por cima das boas intenções sempre de boamente enunciadas e muito poucas vezes realizadas, dos nossos bons desejos, sempre atropelados pela brutalidade da realidade que nos cerca. Essa celebração é regulada pelo modo de produção dos bens simbólicos dentro da Igreja e da sociedade. Vai variar o tanto que o permita a Igreja e a sociedade.

Se alguma coisa real e definitivamente mudar de todas as experiências que se fazem nos dias de hoje, não será por causa de uma renovação meramente superficial, no nível da troca de simbolismos mais na moda. Isso não é renovação, é modernização. A mudança real virá de uma renovação da prática social e eclesial dos cristãos em todos os níveis. Esta será a real e verdadeira conversão que vai tornar mais límpida e transparente a leitura do grande sinal do pão e do vinho. Tal renovação será o espelho vivo da prática de vida da Igreja e de sua auto-compreensão em relação à história de Jesus Cristo.

Uma Igreja triunfalista e autossuficiente, monopolista e dominadora, celebra a sua eucaristia, não a de Jesus Cristo. E o faz à sua imagem e semelhança e não à de seu mestre. A sua própria celebração estará distante da ceia e da cruz de Cristo, das suas raízes históricas, da prática de vida de Jesus de Nazaré e de seu horizonte escatológico do Reino. O sacrifício de Cristo, revivido, reiterado como memória na liturgia se esgotaria na oferta dos dons consagrados, fechando-se à sua significação mais profunda (a “res sacramenti”), num absolutismo clerical, de uma Igreja triunfante neste mundo. Considerando-se na posse do Reino, ela administra seu próprio sacrifício como lhe apraz, e não como lhe indica o seu mestre e Senhor.

A renovação da prática eclesial no mundo de hoje é, pois, o verdadeiro motor da renovação da celebração eucarística nas comunidades. As mudanças que hoje rapidamente se operam na eclesiologia, rompendo o velho e antiquado arranjo monolítico da Igreja medieval, e rearticulando-a sob o eixo do povo de Deus são reflexos de novas experiências históricas da Igreja não ainda de todo desdobradas. Ainda não foram tiradas as conseqüências desses novos rumos no nível da expressão simbólica e na mesma articulação vivencial do dia-a-dia da comunidade, marcada como está ainda pelo antigo sistema, condicionada ainda às velhas imagens de outros tempos, cerceada ainda pelos limites estabelecidos no decorrer da vida que vai colocando os quadros possíveis do agir.

Por outro lado, porém, com o descortino de novas perspectivas de ação no mundo, o povo de Deus no seu conjunto, percebendo-se mais próximo da sociedade, já não cora as faces de pudor, tomando posições frente aos “poderes deste mundo”. Ela mesma não deverá ter mais receio de confessar divisões menores dentro dela, divisões entre seus membros, traídos por interesses diversos e divergentes, cuja matriz não é a fé mas o lugar social ocupado pelos comensais da Igreja.

Essa descoberta de divisões de seus membros, sociologicamente situados na escala social em posições diferentes e, por vezes, antagônicas, nos faz perder a ingenuidade daqueles que ainda percebem o mundo como uma massa contínua e homogênea de pessoas e sociedades, sem as diferenças quer dos indivíduos entre si quer das coletividades diversamente, sistematizadas por organizações sócio-políticas divergentes.

Isso nos leva a crer que, de ora em diante, celebrar a mesma eucaristia, a mesma memória do Senhor, não significará cobrir as diferenças numa harmonia e paz artificiais, que encobrem os diferentes e múltiplos interesses de classe, das injustiças amargadas na história pessoal e social, dos desmazelos da administração inerme. Não há como perder aquela ingenuidade da criança que ainda se diverte com o cavalinho de pau das liturgias-espetáculo. Não estamos ainda no Reino consumado, reunidos no mesmo redil da eternidade sem diferenças de interesses, na mesma ilha de paz e de tranqüilidade, enquanto nem mesmo o sinal posto nos quer deixar nesta visão simplista.

O sinal posto na reunião da comunidade é sinal de alerta de que a vida deve pautar-se segundo a de Jesus Cristo, Seu interesse maior está em que Jesus Cristo, lembrado na eucaristia, foi o Jesus atingido pela violência, pelo derramamento de sangue. Nós, porém, temos às vezes a coragem de nos apresentar no altar conciliados pelo arco-íris de nossas belas fórmulas, sem os pressupostos de uma análise séria e humilde de nossas relações interpessoais, no trabalho, no lar, na vida pública, na vida profissional e assim por diante. Não percebemos o conjunto estruturado e para que lado ele nos conduz qual ovelhas inermes. Não temos coragem de confessar o déficit de diálogo real que existe em nossa vida. Confessamo-nos já recuperados, sem nem mesmo superar o mal endêmico, as barreiras mais aparentes. Apresentamos-nos como comunidade gloriosa, antecipando presunçosamente a consumação da história, sem o sacrifício real, sem a entrega, marca registrada do cristianismo de Jesus Cristo, sem a dedicação e o acolhimento, sem o desprendimento, sem a luta pela mudança e transformação de nossa sociedade. Transformamos a celebração num rito mágico.

Não pretendo analisar o desgaste do rito tradicional da missa, pois este já um fato evidente. Não deixaria, todavia, de ser estimulante entrever os sintomas de desgaste do rito da celebração eucarística segundo os moldes de uma linguagem modernizante. Isso não significa, de forma alguma, que se queira negar valor e sentido à renovação da linguagem. O que se quer afirmar é, sobretudo, que o que está se desgastando é a prática social na qual tal linguagem está ancorada. Ela está, para se usar uma gíria, furada. A velha missa foi envernizada com os poderosos meios de comunicação e o uso das línguas vivas (nisto há algum valor), mas com o verniz de uma sociedade que a produz em série e a substitui, sem mais, como na moda, por expressões cada vez mais cambiantes e visões efêmeras do relacionamento interpessoal e social. Assim se transforma a liturgia num carrossel, como na sociedade de consumo.

O mundo moderno e contemporâneo produziu uma sociedade de opulência e de consumo de bens, pela aplicação de sua racionalidade em todos os níveis de organização do trabalho, da sociedade e da produção da cultura. Ora, isso poderá se estender também à vida cristã, à Igreja.

A renovação litúrgica, nos moldes da sociedade que aí está, vai trilhando o caminho da obsolescência, como todos os produtos em série da praça e do supermercado. Vai sofrer o desgaste dos produtos do supermercado de bens simbólicos da sociedade. A não ser que a celebração tenha outras coisas a dizer além de palavras e significantes vazios.

Não saberia dizer agora quando vai acontecer a definitiva obsolescência do modelo que estamos criando para essa nossa sociedade, mas pode-se prever a exaustão do modelo, na medida em que para manter a platéia amarrada ao espetáculo não resta alternativa senão torná-lo mais atraente e sensacional, cativante e variado. O conjunto torna-se um bom teatro de revista.

A festa continua, mas prejudica a imagem dos seus atores principais, Cristo e a mesma Igreja, interessados em que sua peça não caia em degenerescência por causa de um público em busca de sensação, que não mais lhe percebe o profundo sentido dramático e histórico, revolucionário e libertador.

Por isso hoje a grande questão da teologia e da celebração não é tanto renovar-lhes as vestes quanto renovar a prática de vida na qual se apóiam, é refazer sempre e cada vez a relação fundante e instituinte com Jesus Cristo e os significados maiores que ele nos legou. A prática de vida de Jesus Cristo, sua encarnação histórica, no compromisso e no amor, na missão de cada dia. Essa é a ligação mais vivificante para a celebração. Lembrar os ditos e feitos dele e atar os nossos à sua tradição até que ele venha, marcando o caminho com sinais de esperança para aqueles que nos são companheiros de viagem. Instituir a eucaristia na nossa vida assim como Cristo instituiu, uma vez por todas, a sua cruz fincada em sua vida, interpretando-a na refeição de despedida dos amigos, sua derradeira ceia. Está aí uma tarefa nossa de cada dia.

Por isso, fora da cruz de Cristo não ha salvação. Há sim é muita ilusão e engano. Há fantasia e mito, há sim racionalização perdida e sem o nexo principal e explicativo. A cruz de Cristo, marcando o final de sua vida suada e vivida, na luta do Filho de Deus que venceu a morte e o pecado, é que abriram novas perspectivas históricas para todos os homens, do primeiro ao último.

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A Vida interior de Dom Bosco

Uma questão de espiritualidade

        Tratando da vida interior estamos abordando um tema de espiritualidade. Ante a diversidade de assuntos importantes para serem tratados, tal tema poderá parecer inútil, “papo furado”. O que importa hoje é agirmos para transformar a realidade. Essa de ficar cultivando a vida interior, dedicando-se à meditação e à oração já caiu da moda. É coisa do passado. Mas será isso mesmo ou é mais um dos enganos em que caímos? O que significa a vida interior para os santos? Para Dom Bosco? Para tentarmos uma resposta abordamos os seguintes pontos:

1) o que é espiritualidade?

2) visão do homem e do mundo em que vivemos a espiritualidade

3) a experiência fundamental de Dom Bosco

4) diversidade de situações históricas

5) o eixo estruturante da espiritualidade ontem e hoje

6) a atualidade de Dom Bosco: vida e oração

1.    O que é espiritualidade?

A espiritualidade não é uma sobre estrutura que acrescentamos à realidade de nossa vida, como uma roupa. Uma sobremesa que acrescentamos à refeição principal da vida. Ela é ou deve ser a expressão da própria vida e da realidade que vivemos diante de Deus. Em que consiste propriamente a espiritualidade? Qual é o objetivo da oração?

O principal objetivo da oração é expressar nossa ação de graças a Deus e nossa abertura a ele, dando unidade e sentido à multiplicidade de atividades, acontecimentos, informações, práticas, trabalhos de cada dia. A espiritualidade nada mais é do que um modo de encarar a vida a partir de um princípio unificante. Por meio desse princípio estruturante e unificante a multiplicidade de elementos que povoam nossa história adquire sentido para o conjunto de nossa vida. Esse princípio possui tal força que se torna o valor absoluto a partir do qual todos os demais valores, provisórios e parciais, são iluminados. As nossas numerosas experiências se incorporam à nossa compreensão do mundo e da vida e nos enriquecem. Para o cristão, tal eixo estruturante, tal princípio unificante não é uma coisa do mundo material (como o ter bens materiais, o poder ou o saber e a mesma “boa vida”), nem mesmo uma filosofia, uma ideia de Deus ou uma doutrina. Esse eixo é uma relação fundante com alguém: Deus mesmo em Jesus Cristo. Pela nossa relação essencial de fé com Cristo e, nele, com Deus, as várias respostas que vamos dando em nossa vida não ficam dispersas, soltas no espaço de nossa existência. Elas se unificam numa prática de vida que nos tira do nosso egoísmo e nos expõe diante de Deus e dos homens. Acolhendo esse princípio unificante estamos dizendo que o mesmo sentido último e definitivo de nossa vida não está situado em nós mesmos, no nosso esforço histórico, nos nossos projetos e desejos, mas naquele que nos chamou em Cristo: Deus vivido como Pai. Ele se torna, assim o ponto de partida e o ponto de chegada de nosso caminho, como o foi para Jesus Cristo.

A espiritualidade é, na verdade, um exercício de sair de si mesmo e estruturar a própria vida não a partir de si mesmo, mas a partir do outro (o próximo do Evangelho), visto como valor, colocando-se a serviço (esse é o sentido da missão). Isso, em última análise, é estruturar a própria vida a partir do grande Outro, Deus mesmo.

2.    Visão do homem e do mundo dentro da qual vivemos nossa espiritualidade

O problema não se situa em aceitar o princípio enunciado no item anterior. Todos nós aceitamos que, como cristãos, devemos orientar nossa vida a partir do mandado do Senhor de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.

O problema é quando a gente se coloca no plano da vida e projetamos concretamente essa nossa vida interior. Logo aparecem as formas que enquadram a intuição fundamental, dentro das quais devemos viver nossa vida interior.

2.1.    A vida interior numa visão dualista do homem e da realidade. Aqui separamos os campos, os planos. Há o plano do corpo e o plano da alma. A vida interior cultiva a vida da alma. Devemos, por isso, nos distanciar das coisas do mundo e do próprio corpo, para podermos nos dedicar à vida espiritual. Devemos cultivar a vida de oração, a meditação longe do reboliço da vida, deixando longe as nossas preocupações, lá na porta da igreja. Nesta divisão entre o lado espiritual e o lado temporal, este só atrapalha. O nosso compromisso vai se definir por essa visão dualista do homem e da vida.

Outra divisão parecida de planos que pode atrapalhar uma concepção de vida interior mais unitária é a visão de um mundo do lado de cá e outro mundo do lado de lá. A oração é um momento do céu, no meio de um mundo distante de Deus. Nem parece que Deus esteja presente na realidade do mundo e nas próprias tensões históricas.

2.2.    A vida interior numa visão idealista. Nós somos pessoas cheias de boas intenções, bons desejos, bons propósitos. Na prática, são todos inúteis. Não produzem resultados na vida. Por que? Na verdade, porque são produzidos num segundo andar – no nosso mundo imaginário, sem muita relação com o primeiro andar de nossa vida – o nosso mundo real e concreto. Construímos dois mundos diversos e não construímos nenhuma escada para subir ou descer, isto é, para fazer uma comunicação eficaz entre os dois mundos. No segundo andar idealizamos o mundo que gostaríamos que existisse, mas na realidade só existe dentro de nós, e projetamos essa fantasia do mundo, esse castelo no ar, para o mundo real. Aí então é que nos decepcionamos continuamente. Os dois mundos não colam. E pior, não temos condições reais de influenciar a transformação da realidade na qual praticamente vivemos.

2.3.    A vida interior numa perspectiva individualista. Hoje é fácil perceber, pela própria pregação da Igreja, que nossa fé tem uma dimensão pessoal e social, pública. Mas no tempo de Dom Bosco não havia suficiente consciência disso. A preocupação era viver a própria experiência de fé, a vida interior, numa perspectiva individual: Deus e a alma. Ainda hoje há quem perceba assim sua relação com Deus. Mas essa perspectiva não se sustenta.

2.4.    A vida interior numa perspectiva histórica. Essa perspectiva nasce da convicção de que a história não tem dois andares, mas um só. No andar que sobre é que Deus se dá a conhecer, nele nos fala através dos acontecimentos, no meio dos conflitos e das contradições que constituem a realidade do nosso mundo, no meio de nossa busca de cada dia, no meio das realidades econômicas, políticas, culturais e religiosas que constituem a trama da existência humana e que dão consistência histórica à própria condição humana. Nós somos chamados, dentro dessa história, a nos realizarmos como pessoa: em comunhão com os demais homens (irmãos) e em comunhão com Deus em Cristo (filhos). Essa tarefa nós não a realizamos sozinhos, mas em solidariedade com todos os irmãos (em comunidade).

3.    A experiência fundamental de Dom Bosco

Certamente a visão do mundo e do homem de Dom Bosco não coincide com a nossa hoje em dia. Há diferenças marcantes. Mas o que interessa é que no fundamental Dom Bosco estruturou sua vida a partir de Deus lido nos jovens, principalmente no mais pobre. E aqui está a chave de nossa compreensão de sua espiritualidade e de sua vida interior.

3.1.    A compreensão do homem e do mundo. Como um homem de Igreja, vivendo no séc. 19, Dom Bosco era uma pessoa entre o ideal da cristandade medieval – uma visão sacral do mundo, percebido a partir da instituição eclesiástica forte, à qual cada um devia prestar o obséquio de plena adesão – e o miliar da modernidade – uma visão do homem a partir da subjetividade, como sujeito-ator de seus atos, numa perspectiva individualista. Assim é que toda a carga da espiritualidade e do cultivo da vida interior dessa época estava marcada pela frase: “salva tua alma”, numa dimensão mais individual. O mundo era pensado como dividido entre o espiritual, o campo de atuação da Igreja, e o temporal, o campo da atuação do Estado. Nós como cristãos devemos cuidar do primeiro. Mas Dom Bosco foi além. Ele queria formar buoni cristiani e onesti cittadini.

Sabemos que Dom Bosco, mesmo sendo um homem pré-moderno, no sentido que os sociólogos costumam dar, teve intuições que furavam essa separação de planos. Por isso é que em suas escolas não se pensava só em cultivar a alma, mas esse cultivo passava pelo encontro sadio com o educador (a assistência é uma experiência básica do sistema educativo de Dom Bosco), com uma atividade (trabalho: escolas profissionais, artesanato etc.). Aqui é que Dom Bosco começa a ser um homem atual.

3.2.    A experiência fundamental de Dom Bosco. Tentando aprofundar o item acima, no contexto da espiritualidade, nossa pergunta é: qual foi a experiência unificante da vida de Dom Bosco?

a) Sua prática educativa com os jovens. Tentamos verificar como, na prática, Dom Bosco faz a ligação de sua vida com Deus experimentado em Cristo. Qual é a mediação? Essa pergunta é importante, pois, a vida interior não existe em abstrato. Ela precisa de mediações. Ela só toma forma e existência real na sua referência às mais variadas experiências da vida. Também para Dom Bosco. Para ele essa experiência unificante foi sua prática educativa: seu encontro com os jovens. Foi nesse encontro que Dom Bosco encontrou concretamente o eixo estruturante de sua vida. Nos jovens via a face do próprio Deus, a imagem do próprio Jesus Cristo pobre. A vida interior, nestes termos, é a expressão existencial interior a nós mesmos de nossa relação com pessoas concretas (por exemplo, os jovens) e com Deus.

b) Deus no jovem pobre e marginalizado. A opção de Dom Bosco não se fixa simplesmente no jovem genérico, mas vai para o jovem especificado pela sua situação histórica concreta: o pobre, o desprotegido, aquele que não tem ninguém por ele, que não se pode defender da agressividade da sociedade em que vive. Esse ponto de concreção da vida é fundamental. A unificação da própria vida em Deus pode ser falsa caso esteja desligada de sua matriz histórica, de sua experiência mediadora. Assim é que Dom Bosco não vieu sua vida interior simplesmente no recesso de seu coração, isolado, cultivando um narcisismo espiritual doentio. Isso é coisa anticristã. Nem mesmo os místicos mais típicos da história do cristianismo foram assim. Eles não poderiam realizar sua fé desta maneira. Dom Bosco viveu essa experiência unificante de sua vida no compromisso missionário concreto da fé (numa ‘militância’), numa missão. Não há vida interior no estilo de vida salesiano sem tal referência fundante, sem referência ao jovem especificamente pobre. Como se define tal missão pra nós hoje? Quais são as novas condições para o desempenho de nossa missão e, por conseguinte, quais as possibilidades de uma vida interior no estilo de vida salesiano?

4.    Diversidade de situações históricas

Dom Bosco viveu sua vida interior noutra época histórica: no marco histórico da cristandade em busca de um lugar no mundo moderno. Viveu numa dimensão mais pessoal do que social, mais preocupado com a salvação da alma do que do ser humano inteiro, mais preocupado com a uniformidade dada pela instituição eclesial do que pela diversidade das situações históricas.

Hoje nós vivemos num mundo diverso. Vivemos a situação de uma Igreja dentro de um mundo pluralista com duas marcas: a) por um lado, ele está marcado pela pobreza de imensas camadas da população. Essa pobreza não é apenas residual. Ela é produto de uma estrutura injusta da sociedade; b) por outro lado, vivemos num mundo marcado pela secularização: marcado pelo progresso das ciências e da técnica; pelo progresso da organização da economia, da política, da cultura; pelos fenômenos da industrialização e pela urbanização crescentes; pelo problema demográfico e pela exploração predatória das riquezas naturais; pelos meios de comunicação de massa e pela planetarização dos problemas e conflitos, e assim para frente. De qualquer lado, o pobre fica de fora: quer pela pobreza, que o exclui dos benefícios do progresso; quer pela secularização que destrói as bases de sua esperança, a sua fé religiosa.

E nós o que fazemos? Nossa espiritualidade hoje não pode deixar de levar em conta essa nova situação histórica. Não há mais jeito de nos isolarmos dentro de nossos espaços. Os próprios conflitos da sociedade hoje fazem parte da vida do cristão e da própria instituição eclesial. Diante das novas condições da vida, nossa pergunta é: como desenvolver uma espiritualidade para tempos de conflito?

5.    O eixo estruturante da espiritualidade

É possível uma espiritualidade nova hoje, também para nós salesianos? Uma espiritualidade no estilo de Dom Bosco? Vamos refletir um pouco sobre o “eixo estruturante” da espiritualidade. Estou entendendo por eixo estruturante a linha que vai de Deus, passa pelas mediações e chega até nós e vice-versa. Esse eixo pode variar no correr do tempo. Vejamos três modelos de relação entre Deus e nós:

5.1.    No tempo de Dom Bosco o percurso entre Deus e cada um era mais ou menos entendido assim: do Deus que inabita o coração de cada um para o Deus que é representado pela instituição eclesial e nela pela autoridade. Só mais tarde é que se começou a ver que não só a autoridade é sinal da presença de Deus e de sua vontade, mas cada um das pessoas com as quais nos encontramos;

5.2.    Num segundo modelo o eixo estruturante da espiritualidade não é mais a ligação entre eu e a instituição, mas a ligação entre eu e tu, ambos iluminados pela presença gratuita de Deus: vai-se do Deus que está presente em mim para o Deus que está presente no outro. Mas essa compreensão fica ainda abstrata. Quem é esse outro? Esse outro deve ser procurado segundo os meus gostos ou segundo as exigências da realidade e do próprio Evangelho? Nesse ponto, para estruturar nossa vida interior corremos o risco de seguir apenas nossos instintos subjetivos, os apelos que nos veem de nós mesmos. Não deveremos nos curvar, na fé, aos apelos objetivos da Palavra de Deus que nos fala nos acontecimentos da história? A missão nasce de uma escolha do sujeito ou de uma exigência objetiva de responder às necessidades da história em nome da fé?

5.3.    Passamos à terceira forma de articular o eixo estruturante; nela a linha não vai mais de mim para o outro, mas da realidade humana objetivamente percebida para mim. Vai-se do Deus percebido na realidade humana como acontecimento de Deus mesmo, para o Deus que está em mim pela fé. Vai do Deus lido na realidade conflitiva e ambígua da história – para isso faz-se necessário um processo de discernimento, uma leitura – para o Deus que está em nós, comunidade crente. A nossa vida interior não é mais percebida como uma espécie de “propriedade particular”, mas como um “bem comum” da comunidade. Nós então começamos a partilhar, em fraternidade, dos bens não só materiais, mas também dos bens espirituais: o bem da vida e da missão.

6.    A atualidade de Dom Bosco: vida e oração

Afinal, quando é que Dom Bosco rezava? A célebre pergunta a que se respondia com outra: quando é que ele não rezava? Quando é que Dom Bosco deixava de realizar aquela operação unificante de todas as suas atividades, articulando o eixo de sua vida? Essa é a marca do santo. Para ele a oração não é um supérfluo da sociedade de consumo ou um roubo à multiplicidade de nossas atividades e de nossos compromissos na tarefa apostólica, ou uma fuga do compromisso dura e estafante. Nada disso: a oração é parte essencial do processo da vida. Sem ela não vida cristã, por falta de consciência do sentido da prática, do sentido da vida. O momento da oração é o momento forte do próprio compromisso com a missão, quando articulamos a coerência que deve existir entre as exigências da realidade com a qual nos confrontamos – o jovem pobre e marginalizado – e as exigências do Evangelho de Jesus Cristo. Quanto mais profundo nosso compromisso com a missão de Jesus Cristo tanto mais exigente deverá ser nossa vida interior.

C. Caliman

1975

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Perguntas:          1. Quais são as dificuldades (pessoais e comunitárias) de nossa vida de oração?

2. Como poderemos encarar hoje tais dificuldades?

3. O que poderemos fazer para que a nossa vida interior seja expressão da nossa relação com Deus na realidade de hoje?

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Algumas reflexões sobre a renúncia de Bento XVI

(Anotações para uma mesa redonda sobre o assunto, promovida pelo Departamento de Ciências da Religião do Instituto Dom João Resende Costa – PUCMINAS – dia 21.02.13)

O convidado para essa mesa redonda devia ser outro. Meu amigo Godoy já falava da renúncia de Bento XVI em junho passado, num texto que ele escreveu sobre a conjuntura da Igreja: Quando arrefece a profecia cresce a boataria. É aí chegam as interpretações, boatos, suposições. O que há de real em tudo isso ainda não fica claro para nós meros mortais. Mas algumas reflexões podemos fazer.

O cânon 332 #2 já prevê essa eventualidade: si continget ut Romanus Pontifex munere suo renuntiet, ad validitatem requiritur ut renuntiatio libere fiat et rite manifestetur, no vero ut a quapiam acceptetur. No nosso bom português: se acontecer que o papa renuncie à sua função, para a validade se requer que essa renúncia seja livre e claramente manifestada, não que seja aceita por alguém. De fato, não há ninguém acima dele para essa aceitação. O fato é que já aconteceu coisa parecida na história. É o caso do monge Celestino V que, depois de uns 5 meses, resolveu voltar para o mosteiro. Achou que não era esse o seu caminho. Já andava meio velho, uns 85 anos. Na Idade Média se discutia muito uma questão que nós hoje quase não discutimos. Quando cessa o poder do papa? A resposta vinha já pronta: por morte certa; por demência comprovada e irreversível, por heresia (sim! Por heresia! Aí se discutia como um papa poderia ser herege e outras coisas mais) e, por fim, por renúncia. Assim fica claro que essa hipótese é já prevista – a da renúncia – e de fato já se verificou na história. Agora Bento XVI coloca o seu ato renunciatório em outro enquadramento histórico dentro da alta cúpula do Vaticano.

Alguns acham que ele devia ficar até a morte (não descer da cruz, como fez João Paulo II). Mas essa hipótese não se verificou e não decorre da doutrina histórica sobre a autoridade do papa, tal como o Concílio Vaticano I (1870) definiu. Aliás, aqui é bom prestarmos atenção nesse ponto. Como ler atualmente essa doutrina tão impregnada nos católicos desde o século XIX? Para ler corretamente o serviço de Pedro hoje devemos iluminar o Vaticano I com os ensinamentos do Vaticano II. Para fugir de qualquer equívoco, é preciso distinguir no papa a figura do sucessor de Constantino e a do sucessor de Pedro. São Bernardo escrevendo a seu amigo Eugênio III, em 1148, o aconselhava-o a fazer essa distinção: “Não me consta que Pedro tenha sido visto andando em procissão, vestido com pedras preciosas e de seda, ou protegido por um baldaquino, ou montando um cavalo branco, ou escoltado por soldados ou rodeado por numeroso cortejo de assistentes. Tolera, portanto, esse fausto, que faz de você sucessor de Constantino, como uma concessão ao nosso tempo, mas atento a que não considere isso como obrigação”.

Feita essa distinção, certamente importante, deve-se superar a “inflação ultramontana” que se seguiu ao Concílio Vaticano I, uma visão “infalibilista”, que via em qualquer manifestação do papa já algo infalível. Infalível mesmo é Deus. O papa, como pessoa humana, é falível como qualquer um de nós. O próprio texto da proclamação dogmática de 1870 nos diz que a infalibilidade é um dom, um carisma dado à Igreja para que ela persevere na verdade, pela assistência do Espírito Santo, prometido por Jesus até o fim dos tempos. Portanto, a infalibilidade é uma graça, um carisma que o conjunto dos fiéis acolhe para perseverar na fé (cf. LG 12a). O ministério apostólico do papa é infalível quando ele expressa fielmente essa fé da comunidade dos fiéis, de tal forma que ela seja assim confirmada no seu caminho em direção à verdade, que é Deus mesmo. O mesmo se diga ao conjunto dos bispos, quando dispersos ou reunidos, expressam a fé recebida dos apóstolos, confirmando os seguidores de Jesus Cristo em sua fé.

Um outro ponto que apareceu nas discussões em torno da renúncia do papa e da eleição de outro, é como entra nisso tudo o Espírito Santo. Analisando esse aspecto, gostei da abordagem de I. Gebara, colocando-se contra uma abordagem ingênua e mágica da ação do Espírito Santo na escolha do papa (e em outras circunstâncias). A ação do Espírito Santo não dispensa uma leitura histórico-ideológica dos caminhos das decisões eclesiásticas. Não se pode passar ao largo das divergências e conflitos históricos, sempre presentes onde há seres humanos que colocam fatos históricos. É bem conhecido o episódio relatado nos Atos dos Apóstolos: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…” (15, 28). Diante do conflito entre os seguidores de Jesus Cristo provindos do mundo helênico e os de origem judaica, os apóstolos tomaram, eles mesmos, uma decisão fundamental que não os eximiu de responsabilidade histórica. Não dizem que pareceu bem apenas ao Espírito Santo, mas também “a nós”. Esse nós envolve desejos, embates, demandas, interesses e tudo o mais que o ser humano imperfeito, incompleto, expressa no exercício histórico de sua liberdade. Poderíamos dizer, plageando Tomás de Aquino: o Espírito Santo não anula a nossa história, mas a pressupõe (gratia supponit naturam, non destruit eam).

Olhando para o futuro, o que poderíamos esperar de um novo papa? Primeiro, que ele deixe para traz a herança imperial da cristandade e, assim, purifique o serviço petrino de confirmar os irmãos na fé, conduzindo-os à unidade em Cristo, respeitando a diversidade, buscando a unidade no essencial da fé.

Que ele respeite o serviço apostólico dos demais bispos, valorizando a colegialidade episcopal. Que não se comporte como um superbispo, mas como o irmão maior que vem ao encontro às necessidades da Igreja dentro do mundo de hoje.

Que promova não condenações, mas diálogo e misericórdia, tomando a sério o pluralismo de hoje não só fora da Igreja, mas também dentro dela. Nessa perspectiva, todos nós esperamos que promova o diálogo querido pelo Concílio Vaticano II com o mundo contemporâneo, com os nossos irmãos em Cristo – o ecumenismo – e o diálogo inter-religioso.

Enfim, que leve a sério o Concílio Vaticano II, sem ceder de cá e de lá, sobretudo aos seus detratores!

 Cleto Caliman

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POR UMA PASTORAL DE JUVENTUDE DO MEIO POPULAR

Uma reflexão teológico-pastoral[1]

 Cleto Caliman, SDB

Perspectiva Teológica 34 (1982) 327-351

 1.    PASTORAL

        O primeiro elemento a ser trabalhado é o conceito de pastoral. Por ela a Igreja se organiza, dá coerência à sua presença no mundo e se realiza como sinal e instrumento de libertação, à medida em que responde à sua missão evangelizadora.

 A articulação da pastoral faz-se por duplo titulo. Em primei­ro lugar, por missão recebida do próprio Cristo (cf Mt 28, 18-20 e par.). A Igreja, pois, recebe do mesmo Cristo a autoridade (o “poder”, a “exousia”) de proclamar o Evangelho do Reino. Em segundo lugar, a Igreja organiza sua pastoral como serviço qualificado ao homem. Para tanto deve articular-se na história, com as demais realidades. Esse serviço lhe dá credibilidade e estímulo na realização de sua missão.

 Mesmo reconhecendo a dificuldade de ter clareza neste assunto, tentemos ao menos demarcar o campo. Na gama de usos do termo “pastoral” há duas balizas, que demarcam os extremos do campo. Por um lado, está uma compreensão reducionista entende a pastoral como a prática do pastor de almas; por outro, está uma compreensão diluída, onde praticamente tudo é rotulado de pastoral. Para evitar esses dois extremos é preciso, primeiro, definir qual o papel da realidade (mundo) na constituição da pastoral; segundo, produzir dentro da Igreja, entendida como uma totalidade, uma distinção de funções e serviços entre hierarquia e fiéis.

 Qual seria então o papel da realidade na constituição da pastoral? A dificuldade de produzir uma definição de pastoral está em que ela não se deixa definir “a priori”, de forma abstrata, a partir da essência da Igreja, deduzindo sem mais seu agir histórico do seu ser transcendente. Para se saber o que é ou não pastoral em dado mo­mento não basta uma definição formal. É preciso captar a Igreja enquanto se realiza em sua prática histórica. Ora, essa realização só se dá na dependência da situação presente onde ela é interpelada pela palavra de Deus e convocada a dar uma resposta evangélica. Por isso “reconhecer a realidade” (DP 85) faz parte do próprio agir pastoral da Igreja. Assim como variam a visão da realidade e a própria consciência que a Igreja tem de si mesma no correr da história, da mesma forma variam as práticas históricas da Igreja e o mesmo conceito de pastoral[2].

 O outro ponto diz respeito a uma distinção interna à totalidade da Igreja, entre hierarquia e povo de Deus. A premissa de uma Igreja toda ela ministerial, responsável, na sua totalidade, pela mis­são de Cristo, não anula a distinção de papéis. A variedade de dons e serviços são frutos do mesmo Espírito de Jesus Cristo (cf LG 12) para a edificação da Igreja. Isso quer dizer que tanto a prática histórica do povo de Deus quanto, dentro dele, a do ministério ordena­do, expressam a mesma missão recebida. Em sentido mais amplo e abrangente a pastoral se entende como a prática global da Igreja com duas tarefas específicas: uma pela qual a Igreja como um todo (hierarquia e povo de Deus) se articula no mundo; outra pela qual se realiza uma tarefa específica de “animação” da vida cristã no mundo, como responsabilidade conjunta da hierarquia e do povo de Deus (mais adiante distinguimos dentro dessa “animação” a ação de governo: o serviço de direção e de unidade que caba ao ministério ordenado).

 O importante aqui é perceber que as tarefas de articulação da Igreja no mundo e de “animação” da vida cristã são distintas, mas não separáveis entre si. A realidade da Igreja, como a vida, é global. A Igreja não pode realizar uma tarefa sem a outra. Seria falhar à sua missão no mundo. Não vamos aqui aprofundar os critérios que de­vem reger a relação entre os dois serviços dentro da Igreja.

 Posto isso, prosseguimos na tentativa de esclarecer três pontos: 1) O que é mesmo pastoral como ação específica da Igreja? 2) Como a Igreja articula sua ação no contexto da sociedade? 3) Como essa articulação global da pastoral se especifica nas diversas “pastorais” da Igreja. Tratamos da definição, da estratégia e da especificação da pastoral.

 1.1. O que é mesmo pastoral?

 Vamos partir da compreensão da pastoral como animação da vida cristã no mundo, segundo uma definição que nos oferece C. Boff. Ele define a pastoral como “a animação de toda a vida cristã a partir da fé”[3]. Explicitamos a definição por partes:

 a)    A “animação” diz respeito à tarefa de “pastorear”, isto é, de “fazer crescer o Corpo de Cristo, de edificar a comunidade eclesial”[4]. A ação pastoral visa inspirar a fé concreta dos fiéis no dia-a-dia. Para isso são criadas muitas linhas de pastoral, conforme a visão da realidade e a necessidade dos tempos. Por elas os fiéis são orientados a participar na vida da Igreja e do mundo (trata-se das diversas pastorais: da terra, operária, indígena, dos direitos humanos, vocacional, sacramental, bíblica, etc.). O fruto dessa animação é a “ação cristã” no mundo e a concretização da vida cristã nas mais variadas situações. Assim a Igreja realiza o seu ser específico de sinal e instrumento de libertação.

 b)   A pastoral é a animação “de toda a vida cristã”. Trata-se do objeto específico da ação pastoral. A vida cristã não é um “lugar” separado do mundo. Tal visão revelaria uma compreensão do mundo fora de Deus, realidade neutra e vazia de sentido salvífico. Ora, o mundo é uma realidade que possui “caráter teológico”, como lugar onde Deus se comunica com o homem. A mesma Igreja não pode compreender sua auto-realização sem o mundo, dentro do qual ela deve realizar dinamicamente sua essência de sinal e instrumento da salvação[5]. Portanto, tudo faz parte da vida do cristão, como objeto do seu discernimento de fé. Já se dizia antigamente que nada do que é humano é alheio ao cristão. Todas as dimensões da vida, desde a realidade econômica, à política e à cultura, até a religião, a dimensão pessoal e social, interessam-lhe.

 c)    A pastoral é a animação de toda a vida cristã “a partir da fé”. Chega-se então à chave de compreensão da ação pastoral. Ela só tem sentido quando parte da fé e a expressa. Tudo é pastoral, se expressa o “pastoreio”. Mas aqui entramos num terreno movediço. Por um lado, essa afirmação parece ser pacífica quando se trata de assunto interno da prática da Igreja, como a celebração dos sacramentos, a pregação, o atendimento religioso dos fiéis e assim por diante. Mas por outro lado, a coisa muda quando se trata da participação no campo da política, dos sindicatos, da luta operária, da defesa dos índios, dos posseiros, etc. Onde uns vêem ação pastoral da Igreja no “social”, outros enxergam uma intromissão indevida. São duas leituras do mesmo fato, de dois pontos de vista. Para escapar à dificuldade da dupla leitura fala-se tradicionalmente de “ação de suplência”. Por ela a Igreja assume tarefas históricas que normalmente cabem aos cidadãos organizados. Mas devido à fraqueza do povo são levadas à frente pela Igreja, subentende-se, até que a sociedade possa tomá-las sob sua direção. Talvez seja mais apropriado, neste ponto, superar essa nomenclatura. Ela obriga a Igreja, a todo o momento, a defender suas instituições sociais quase como fatos definitivos de sua essência. Com isso ela perde aquela agilidade histórica necessária para articular-se como resposta à realidade de cada tempo. Talvez fosse mais interessante falar de articulação da Igreja na sociedade. Tomando consciência de sua historicidade e, portanto, de que sua realização como Igreja se dá na dependência da sociedade, a decisão sobre o que deve ser feito aqui e agora está na dependência da visão da realidade. Noutros termos: a Palavra ouvida na situação da vida vai determinar a estratégia pastoral e a ordenação das várias realidades pastorais. Essa percepção cria um espaço de liberdade onde o cristão se decide sobre o que deve fazer. Vamos para um exemplo: como posso saber de antemão se criar um sindicato faz parte da pastoral da Igreja em dada região? Só vendo a realidade. Onde há sindicato organizado parece que não tem sentido. Mas e onde não há e o povo ainda não tem condições de se organizar na defesa de seus direitos?!

 Dissemos acima que a pastoral haure sua força da própria autoridade de Cristo: é uma “ação autoritativa” da Igreja. Falta agora explicar melhor qual o sujeito dessa ação autoritativa. Já ficou evidente que toda a Igreja, hierarquia e fiéis, é o sujeito dessa ação autoritativa. Mas essa responsabilidade é compartilhada de forma diferente. Para que, de fato, todos os fiéis se tornem efetivamente co-responsáveis pela ação pastoral é necessário um serviço específico de direção e de unidade. É o que se poderia chamar de “governo pastoral”, como ação pastoral específica do ministério ordenado. É um serviço fundado em Cristo, por ele instituído e exercido em seu nome.

 Até agora tentamos definir o que é pastoral. Como toda tentativa de definição, ela é forçosamente abstrata. Nosso próximo passo vai ser compreender essa pastoral no contexto concreto da realidade social, onde a ação pastoral, como qualquer ação humanamente responsável, repercute como ação articulada. A Igreja, sendo uma grandeza histórica, não poderia deixar de articular-se na história. Querendo ou não, ela é um “poder histórico”, sua ação tem um sentido político, expressa tendências sociais, interesses objetivos. Há os que entendem isso numa visão triunfalista e ufanista, de uma Igreja que se impõe à sociedade. O Concílio Vaticano II, contudo, nos recordou a visão evangélica desse “poder histórico” como serviço ao homem. Para que, de fato, se torne um serviço ao homem é de suma importância ver como a Igreja se articula na sociedade. E a questão da estratégia pastoral.

 1.2. Estratégia

        A estratégia define o modo como a Igreja ordena as mais variadas realidades pastorais. Define a organização dos meios (realidades pastorais) em vista de seus fins (os objetivos da ação pastoral, estabelecidos pela sua própria missão no mundo, em nome de Cristo). Sob esse ponto de vista, é uma necessidade histórica para a Igreja adotar uma estratégia, sem a qual não pode ser eficaz na sua ação. Ela deverá ver concretamente como fará “a animação de toda a vida cristã a partir da fé”. É a questão dos modelos de pastoral.

 G. Gutierrez, tomando como critério a auto-compreensão da Igreja, distingue quatro modelos de pastoral: da cristandade, da nova cristandade, da “maturidade da fé” e, por fim, da pastoral profética[6]. Nesse trabalho adotamos o critério da relação da Igreja com o mundo, distinguindo três modelos de pastoral[7]. Temos consciência de que este é apenas um ângulo da problemática. Há certamente outros critérios que poderiam ajudar a compreender a ação da Igreja no mundo.

 Seguindo o critério da relação da Igreja com o mundo, distinguimos uma primeira estratégia pastoral para uma situação em que a Igreja se apresenta hegemônica em relação ao poder político. Baseada no princípio do primado do poder espiritual, ela se impõe ao poder temporal.

 Uma segunda estratégia pode ser vista no caso em que a Igreja se articula numa sociedade sob o mando de uma classe hegemônica, no nosso caso, com a burguesia. Nessa situação, a hegemonia não cabe mais à instituição eclesial. Esta, querendo ou não, se submete na prática à hegemonia de uma classe. Neste contexto, a Igreja defende uma autonomia relativa do poder temporal em relação ao espiritual, preservando, através do principio do primado do espiritual, uma área de atuação na sociedade.

 Uma terceira estratégia pastoral se torna possível onde e quando a hegemonia da classe dominante (no caso da burguesa) co­meça a ser contestada. A instituição eclesial passa então por uma mudança de rumo (em linguagem religiosa fala-se de “conversão”). Inicia-se então um processo de articulação da instituição eclesial com as classes subalternas. E o significado profundo da opção preferencial pelos pobres. Enquanto expressa a preferência de Jesus pelos pobres e pequenos, ela é evangélica; enquanto se concretiza em dada conjuntura histórica, numa sociedade conflitiva, determinando decisões especificas, como fundamento de uma nova estratégia pastoral, é estratégica.

 As três estratégias refletem, por um lado, um longo processo histórico. Mas, por outro, refletem a própria situação pastoral atual, onde os três modelos convivem, inspirando práticas, normas e atitudes. Influenciam a organização pastoral da Igreja, produzindo tensões e linhas de trabalho pastoral divergentes em todos os níveis. Caracterizamos rapidamente cada um dos modelos. Ficará mais fácil então perceber em que linha podemos articular a PJMP.

 a)    O primeiro modelo teve seu ponto de partida na virada constantiniana no século IV e se impôs com vigor com Gregório VII, no século XI. Nele a Igreja institucional se asso­cia ao poder político e dele se utiliza para levar a termo sua missão evangelizadora. Essa aliança com o poder deu origem à pastoral de cristandade. Ela é teocêntrica e eclesiocêntrica. Organiza-se de cima para baixo e tem sua coerência a partir do centro do poder. Tal mo­delo de pastoral sofreu um “reajuste” na pastoral “tridentina”[8]. Ela transfere toda a força da pastoral para a “salvação da alma”. Tem uma visão pessimista da história, tomando uma posição essencialmente defensiva (apologética) e tática frente à realidade social. Ou seja: o pastor toma em consideração a realidade não porque é um “lugar teológico” onde acontece salvação ou perdição, mas porque incomoda e atrapalha seu trabalho apostólico.

 b)   O segundo modelo, que se poderia chamar de pastoral “modernizante”, baseia-se em outros pressupostos. E antropocêntrico, mais precisamente: centra-se no cristão (pastor) esclarecido pelas luzes da razão. Na verdade, poder-se-ia chamá-lo de modelo de pastoral iluminista. Por um lado, está em continuidade com o modelo anterior, enquanto se escora numa aliança com as elites – com a classe dominante. Por outro lado, se distancia dele enquanto assimila as características do “sujeito social” burguês. Sua força já não está na presença massiva da instituição eclesial, mas na ação do pastor iluminado, empreendedor, cheio de iniciativas. O ideal do pastor é o empresário moderno bem sucedido. O pastor completo aparece como um empresário do sagrado, que sabe planejar, estimular as pessoas, envolvê-las nos seus projetos. Há valores. Nele se reconhece o valor da pessoa humana livre e autônoma. O pastor (bispo ou padre) é considerado como sujeito que age responsavelmente, e não apenas como representante de uma instituição. Seu limite está em que parte de uma visão setorializada da realidade, como resposta às necessidades religiosas de sua clientela específica, obscurecendo a própria perspectiva da missão da Igreja no mundo. Atende bem a freguesia: movimentos específicos, especializados, auto-suficientes, comunidades centradas sobre si mesmas, grupos limitados pelo interesse de classe. A pastoral é “racionalizada” por setores estanques. Essa visão funcionalista faz com que se criem “auto-serviços” religiosos, sem uma verdadeira perspectiva eclesial e missionária. O vício desse modelo é que ele não parte de uma visão global nem da Igreja nem da sociedade. Sob esse aspecto, a pastoral de cristandade era mais coerente. Partia de uma visão global, se bem que triunfalista, da Igreja. Foi preciso esperar muitos séculos, até o Concilio Vaticano II e as Conferências de Medellín e Puebla, para encontrar um modelo pastoral que parte de uma visão global da sociedade, dentro da qual se descobre o destinatário preferido do Evangelho, o pobre. Essa realidade específica do pobre determina uma ótica específica para a articulação de toda a pastoral.

 c)    O terceiro modelo se caracteriza, pois, por um posicionamento novo da instituição eclesial no contexto da sociedade na ótica dos pobres. O Documento de Puebla fala de “opção preferencial pelos pobres”. Faz a critica dos modelos anteriores, visando, por um lado, superar seus vícios, por outro lado, recuperar seus valores, agora em outro marco histórico da consciência eclesial e social. O quadro conjuntural é outro. Dentro de uma visão global da sociedade, articula-se tanto o senso de globalidade e de unidade do modelo de cristandade quanto o senso do valor da pessoa humana, livre e autônoma, do modelo modernizante. Esse modelo de pastoral poderia ser chamado como pastoral de articulação dialética. De fato, a inserção da Igreja numa sociedade conflitiva exige uma visão dialética da sociedade e do agir histórico da Igreja enquanto agir social. Isso significa perceber que a própria ação pastoral da Igreja, como ação histórica, situa-se dentro de uma constelação de interesses. Sua legitimidade não pode ser pensada apenas a partir da missão divina da Igreja. Seria então fundamental e urgente repensar o próprio processo de legitimação histórica da ação pastoral da Igreja.

 Em sua realidade concreta o fato social nunca é genérico. Ele é sempre específico, tem seu lugar e tempo, suas causas e conseqüências. O mesmo se deve dizer da pastoral. Isso significa que hoje deve-se ascender a uma visão política não só da sociedade como um todo, mas também da Igreja e de sua ação pastoral no contexto da sociedade. Dentro dessa perspectiva, deve ser vista a estratégia pastoral, enquanto articula os mais diversos fatos pastorais dentro de uma dada conjuntura, dá-lhes coesão e coerência, sentido e finalidade em relação à totalidade da Igreja. Nosso próximo assunto ten­ta estabelecer a relação entre estratégia pastoral e as várias pastorais.

 1.3.  Especificação

        O que se pretende neste item é estabelecer a relação entre a unidade da estratégia pastoral e a diferença entre as várias “pastorais” da Igreja. O Documento de Medellín, preocupado com uma realidade diferenciada e conflitiva, falava de “pastoral de elite” e “pastoral popular”. Mas tarde, o Documento de Puebla pretende a “superação da distinção entre pastoral de elites e pastoral popular” (1215). Será que Medellín e Puebla estão falando da mesma coisa sob o mesmo ponto de vista? Provavelmente não. Medellín estava sob a pressão da realidade social do continente, que exigia da parte da Igreja uma resposta urgente e concreta, uma ação pastoral decidida em favor da justiça, para superar o escândalo da pobreza. Diríamos que falava em nível operacional. Puebla mostrou-se mais preocupada com a unidade da ação da Igreja. Organiza o seu discurso não mais a partir do impacto da pobreza, mas a partir da necessidade de uma resposta articulada e coerente, isto é, de uma estratégia pastoral, como resposta global da Igreja à situação.

 Os dois discursos estão, portanto, em níveis diferentes. Realmente, não se pode dizer que a Igreja deve traduzir sua missão evangelizadora única e indivisível em duas estratégias pastorais, uma para a elite e outra para as classes populares. Seria o mesmo que colocar os dois grupos em trilhos diferentes e paralelos. Nunca se encontrariam, nunca chegariam a uma real conversão. Partiriam de uma posição de interesse particular, legitimado pela própria articulação da pastoral da Igreja. Essa pastoral seria de “dois caminhos”, um para os ricos, outro para os pobres. Se é verdade que uma pastoral de “dois caminhos” traria funestas conseqüências para a própria realização da Igreja no mundo e para a sua unidade, também parece ser verdade que não se pode pretender organizar uma ação concreta de pastoral “para todos”, indistintamente, como se não houvesse diferenças sociais e entraves a superar. É importante, pois, estabelecer em que nível se afirma a unidade da pastoral e em que nível se afirma a diferença das várias pastorais.

 a)    O que faz a unidade da pastoral? Não é a realidade que está aí, extremamente diversificada. Quando falamos de unidade não é preciso destruir a diversidade, mas apenas captar o lugar específico onde deve ser situada. A unidade da prática histórica da Igreja não visa a uniformidade de todas as ações concretas, mas a unidade dos objetivos de todos. Não se trata de fazer tudo do mesmo jeito, mas buscar o mesmo objetivo: a realização da Igreja como sinal do Reino e serviço ao homem. Essa unidade vem traduzida por uma estratégia global capaz de articular as mais variadas ações concretas da pastoral, em vista da finalidade comum a todos. Essa estratégia reflete a única e indivisível missão de Cristo e da Igreja. Deve espelhar o ideal da unidade, orientando as decisões e as ações concretas na direção querida por Deus. Não se deve, pois, imaginar uma estratégia para as elites e outra para as classes populares. O que se pode discutir é a existência de pastorais específicas, articuladas entre si, para realizar a unidade querida por Deus. Para exemplificar: Puebla falou de “opção preferencial pelos pobres” como eixo orientador de todas as ações pastorais da Igreja, do conjunto de sua prática pastoral. Aí se dá a definição da estratégia. Agora fica para cada situação concreta decidir como essa definição vai se traduzir, conforme a diversidade em que se apresenta a própria realidade de um país, de uma cidade, de uma paróquia de centro ou de periferia, etc.

 b)   O que faz a diversidade das ações pastorais da Igreja? Acima afirmamos que a única estratégia pastoral da Igreja se realiza na multiplicidade de ações pastorais. Essa multiplicidade não é mera contingência que se deve tolerar. Ela existe na realidade como fruto do Espírito. Como tal, é mediação necessária da unidade que se busca na articulação de uma pastoral global[9]. A diversidade das ações pastorais concretas espelha a multiplicidade de situações histórico-conjunturais e a própria visão dessa realidade a que ascendemos pela consciência histórica.

 Essa percepção da diversidade da realidade humana eclesial e da unidade a que se deve aspirar não é estranha. Já Paulo instruía a comunidade de Corinto neste sentido: “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos” (1 Cor 12, 4-6).

 Pelo visto até agora, podemos dizer que a visão da realidade, de um modo ou de outro, determina a própria resposta pastoral da Igreja. A visão da realidade a que chegou a Igreja latino-americana depois do Vaticano II determinou concretamente a definição da estratégia pastoral a partir dos pobres, deslanchando uma série de “pastorais” concretas, todas elas articuladas a partir dessa opção de base.

 Nosso próximo passo: será ver a realidade do jovem no contexto da sociedade conflitiva em que vivemos.

[1]    Esse texto foi produzido a pedido dos jovens da Pastoral de Juventude do Meio Popular de Belo Horizonte. Por isso se alarga naqueles pontos que se julgou necessário sublinhar, como, por exemplo, na compreensão da pastoral.

[2]    Nesse sentido, cf. J. B. LIBÂNIO, O que é pastoral, ed. Brasiliense, 1982. O Instituto Nacional de Pastoral promoveu recentemente alguns estudos sobre a questão: cf. C. BOFF, O específico da pastoral, e J. A. R. GOPEGUI, O que é pastoral? ambos mimeo. Cf. ainda H. SCHUSTER, Pastoralthologie, Sacramentum Mundi III, 1059-1066; F. X. ARNOLD – K. RAHNER, Handbuch der Pastoraltheologie 1, Herder, 1970, 2ª ed.

[3]    Texto cit., p. 2.

[4]    J. B. LIBÂNIO, O que é pastoral, 1982, p. 2.

[5]    Cf. F. X. ARNOLD – K. RAHNER, op. cit. pp. 89-92.

[6]    Cf. Líneas pastorales de la Iglesia en América Latina, Lima : CEP, 1976, 2ª ed.

[7]    Cf. C. CALIMAN, Modelos de Igreja e educação libertadora. Em: A. MOSER – C. CALIMAN, – R. I. de ALMEIDA CUNHA, Libertar: Desafio da Educação, Rio de Janeiro: CRB,  1982, pp. 29-62. 44s.

[8]    Cf. J. B. LIBÃNIO, op. cit. pp. 32-56.

[9]    J. COMBLIN, O Tempo da Ação, Petrópolis: Vozes, 1982, pp. 11-44.

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