Cristianismo não religioso. O que é isso?

Participei na terça feira, dia 25 de março, de uma banca de mestrado. Nele Sandson Almeida Rotterdan apresentou sua dissertação com o título: Senso religioso dos sem Religião: estudo a partir da noção de cristianismo não religioso de Gianni Vattimo. Em cima da leitura que fiz, apresentei as seguintes considerações.

1. Em busca de uma interpretação do cristianismo. Não é de hoje que o cristianismo está em crise. As interpretações se sucedem . Crise não é de per si negativa. Ela traz em si uma nova esperança. Desde o advento da modernidade, o processo de secularização colocou em crise o cristianismo tradicional, marcado pela cristandade, agora sob o impacto crescente da razão ilustrada (Aufklaerung). Muitas foram as leituras desse processo. Antes de Vattimo, dentro da tradição teológica alemã, Bonhöoeffer já havia lançado sua nicht religiöse Interpretation des Christentums. Ele tinha como pressuposto a radicalização do processo de secularização que conduz a um mundo em que o ser humano moderno já vivia sem o pressuposto Deus (Nietzsche já havia decretado a “morte de Deus”), ou seja: o ser humano devia ser responsável pela sua história et si Deus non daretur (mesmo se não existir Deus) .Desde os anos 60 H. COX, The secular city (A cidade secular), 1965; The religion in the secular city (1984); por fim, Fire from heaven (1994), e tantos outros, já refletia a transição por que passava o cristianismo ocidental.

2. O que entender por cristianismo não religioso? Para Bonhöffer a interpretação não religiosa do cristianismo se contrapõe de imediato a duas figuras emblemáticas da teologia do séc. XX: Bultmann e Barth. Para Bonhöffer a interpretação bulmaniana diluía a mensagem do cristianismo numa interpretação a partir do indivíduo moderno, pensado a partir da teologia liberal, sem levar em conta a sua radicalidade; enquanto para ele K. Barth, em sua teologia dialética, resgatava o absoluto de Deus em detrimento da história (Deus é o ganz Andere). O que lhes faltaria era levar a sério a encarnação e a cruz. Falando de outro modo, o esvaziamento de Deus, a kenosis.

Aqui, creio, tocam-se Bonhöffer e Vattimo. Todavia, o horizonte de ambos me parece diferente. Para o teólogo alemão o pano de fundo de sua leitura radical era a modernidade e seu desenvolvimento. Para o filósofo Vattimo, é a pós-modernidade. E nesse horizonte do pensiero debole Vattimo pensa a possibilidade de um futuro para o cristianismo.

Encurtando todo o discurso sobre como Vattimo pensa esse cristianismo não religioso como religião do sujeito pós-moderno, que está tão bem trabalhado pelo Sandson, depois da leitura que fiz, cheguei a algumas reflexões, diga-se de passagem, de caráter “não dogmático”! Achei que também o cristianismo não religioso de Vattimo tem também seus pequenos “dogmas”:

O primeiro é que ele, mesmo se afirmando no horizonte da história humana, pressupõe o processo encarnatório como “entrada” do Divino no mundo da hermenêutica. Essa afirmação é necessária, mas incapaz de superar a ambiguidade da história humana, mesmo sendo a história do Divino que se faz humano. Então me lembro da figura de Sísifo. Nessa leitura do cristianismo, nós nos parecemos a Sísifo, empurrando a pedra para cima da montanha. Mas ele é sempre devolvido ao vale! Assim, nós nesse cristianismo, interpretado à luz do pensamento debole, somos sempre devolvidos aos fragmentos de nossa realidade, da nossa existência.

Assim, o mundo religioso dos sem religião se parece a uma grande floresta virgem. Nós nos encontramos nela sem mapa e sem bússola. Mas somos premidos a fazer o nosso caminho com os nossos parceiros históricos.

O segundo “dogma” é desdobramento do primeiro. Com a “morte de Deus” e da metafísica clássica, estamos inexoravelmente referidos a nos mesmos, à nossa existência (Dasein). Aqui se radicaliza a passagem de um teocentrismo exacerbado a um antropocentrismo radical. Antes se legitimava a história a partir de um centro fora do mundo, imaginado como o mundo de Deus. Agora, se legitima a história a partir do ser humano. Antes o ser humano achava que tinha às mãos o mapa e a bússola, ou seja, a certeza de um “sol” para orientá-lo na floresta da história. Agora não lhe aparece esse “sol”, deu eclipse. Ele não o vê. Está centrado em si mesmo, sempre recomeçando. Não pode vangloriar-se de um troféu conquistado e sentar-se à sombra. Tem que conquistar-se a si mesmo a cada dia pela responsabilidade histórica. A construção é sempre provisória.

Enfim, a verdade dessa religião pós-moderna é que não há verdade para além de nós mesmos. Para que essa verdade seja possível, no entanto, é necessário abrir-se para o outro, entrar em sintonia com a história de Jesus, numa entrega sem limites. Essa talvez seja a “verdade” tanto para cristãos “tradicionais” quanto para pós-modernos: a imensa caridade com a qual Cristo nos amou, entregando-se na cruz, desvestindo-se de toda figura divina (aliás, isso encontramos e Fl 2, 6-11).

3. Crise radical de um modelo de cristianismo. No meu entender, as interpretações radicais do cristianismo hoje refletem a crise radical de um modelo de cristianismo (e de Igreja) marcado pela forma histórica da cristandade, inaugurada por Constantino no séc. IV e, depois, legitimada tanto pela filosofia, a partir da metafísica clássica, centrada na essência, quanto pela teologia em sua formulação clássica dos dogmas cristãos.

Hoje também a reflexão teológica se volta para o repensamento do cristianismo para além da moldura histórica da cristandade. Por exemplo, na teologia da libertação temos a interpretação de P. Richard, Morte das Cristandades. Nascimento da Igreja (Paulinas, 1982) ou J. Sobrino, A Ressurreição da verdadeira Igreja (Loyola, 1982). Na verdade, a morte da Cristandade, sob o impacto do processo de secularização etc. abre a possibilidade de um cristianismo diferente do tradicional, sacral, do dogmatismo rígido e estático, para uma interpretação dinâmica, relacional, dialógica, existencial. Essa interpretação pode também ser chamada de secular porque leva a sério a história, propõe responsabilidade pela história, sem muletas!

A afirmação da fé como algo “absoluto”, que defina a própria identidade cristã, não pode ser deduzida imediatamente da capacidade humana de impor um modo de ser e de agir, mas diz que a fé é, antes de tudo, um dom, uma oferta que Deus faz de si mesmo em Jesus Cristo. Nesse sentido é graça absoluta não depende de nós, mas daquele que se dá como graça libertadora. Essa oferta gratuita e livre de Deus deve ser recebida em plena autonomia e liberdade pelo ser humano no mundo, assim como o evento do outro em minha vida tem o sabor da gratuidade que se abre à uma resposta, dando sentido à minha vida.

Na verdade, a fé não suprime o que é humano, histórico – a autonomia e a liberdade dos sujeitos. Antes pressupõe o ser livre e autônomo. A cristandade, como amálgama de religião e política, é que viciou o cristianismo pela imposição da fé (coerção social, inquisição, cruzadas etc.).

4. Fim do Cristianismo? A crise radical da cristandade não anuncia por si mesma o fim do cristianismo, mas uma nova chance histórica de buscar um cristianismo capaz de afirmar o seu horizonte último, marcado pela condescendência divina (significada na Encarnação) como afirmação plena do humano. Esse leitura nem é nova. Já Ireneu de Lião afirmava que gloria Dei homo vivens (Adversus Haereses).

De fato, numa fé dialogal o outro se torna constitutivo do sujeito. Assim, o Outro divino não nega o humano, mas o afirma como plenamente humano. Como diz L. Boff: tão humano assim, só mesmo sendo divino.

5. Deus está morto? Última reflexão: o que está implicado no anúncio da “morte de Deus”? Qual a sua lógica? No meu entender, não diretamente a negação do Absoluto, mas a negação do “outro”, o ser humano no mundo como livre e autônomo para definir o próprio destino, dando-lhe um sentido. O evento da “morte de Deus”, a cruz de Cristo, é um discurso-convite a ser-em-relação e não a negação do “Outro” (Divino). Uma das leituras que os intérpretes modernos deram de Jesus é justamente o de ser-para-os-outros.

Belo Horizonte, 25 de março de 2014.

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